É no mínimo curioso que a insurgência popular dos cangaceiros, ocorrida no começo do século 20, nunca tenha sido tema de um estudo particular e profundo, apesar de ser assunto permanente no imaginário do povo brasileiro. Frederico Pernambucano de Mello, historiador especialista em violência rural, investiga a trajetória dos donos do sertão nordestino e preenche uma lacuna histórica no livro Estrelas de couro: a estética do cangaço, prefaciado por Ariano Suassuna e editado com mais de 300 imagens.
Em 1997, Mello decidiu iniciar o estudo devido a um incômodo estético, que costumava o afligir quando se deparava com peças de acervos públicos e privados. “Havia um requinte, um orgulho, uma imantação estética em cada peça daquela, um conjunto de valores”, avalia.
Segundo o pesquisador, o cangaceiro não é um criminoso comum. A composição dos trajes, que, além de punhais, rifles e pistolas, eram adornados com chapéu, bornais, cartucheiras e perneiras extravagantes, denuncia: trata-se de um bandido requintado, diferente do fora da lei urbano que protagoniza os noticiários. “O criminoso procura se mimetizar, se ocultar, e facilitar os seus golpes. Como a gente vê nos criminosos da cidade, o próprio pistoleiro do sertão. O cangaceiro, não. Se você considerar a paisagem sertaneja, que não é a mais exuberante, a presença daqueles homens era um verdadeiro porre de cores. E eles eram vistos na caatinga como se fossem extraterrestres”, afirma o pernambucano.
Eles andavam de lá pra cá pelo sertão, saqueando propriedades privadas e fugindo da polícia. Distante das definições que enquadram os cangaceiros ora como justiceiros ora como assassinos, Mello procura apenas conferir aos primeiros anos do cangaço o status de evento histórico importante. Para ele, o movimento liderado por Lampião e Maria Bonita se assemelha às revoltas de índios, mestiços e negros, no período colonial. “No tempo que ocorreram, os movimentos foram ilegais. Com o passar do tempo, havia algo relevante, com anseios de formação da nação brasileira. O cangaço é irmão do indígena, do quilombo e da revolta social, mas tem características curiosas. Primeiro, ele não é intermitente. E é metarracial: você podia ser caboclo, negro, sarará, ter olhos verdes; qualquer forma racial habilitava a fazer parte do grupo. É o grande irredentismo metarracial brasileiro. Isso, como tema histórico, reconcilia o cangaço com a história do Brasil”, analisa.
Os uniformes decorados dos cabras da peste também tinham valor simbólico e místico. Os inconfundíveis chapéus, por exemplo, carregados de estrelas e moedas, serviam de amuleto de proteção contra males humanos e porventura espirituais. “Ele se cercava por todos os lados. Se fosse flagrado, estava protegido pelos vários sinais, que são pobres quando considerados singulares, porque são orientais e milenares, mas eram aproveitados pelo cangaceiro na composição, como arte de síntese. Pude ver o cangaceiro como o índio, o samurai ou o cavaleiro medieval europeu. Eles carregam consigo a arte popular. O cangaceiro, na aba do chapéu, na cartucheira, na pistola, até na perneira”, comenta o escritor.
A conexão explícita do homem com a divindade, própria do homem primitivo, permanece nas narrativas do cangaço por meio do conjunto estético, que pode ajudar a entender de maneira menos preconceituosa os bandoleiros. “É preciso considerar as atenuantes culturais do fenômeno: o cangaceiro foi alguém que protagonizou uma tradição brasileira aberta no século 16, o irredentismo. Era um período em que não havia poder público muito definido no sertão. A justiça social tinha que ser administrada de algum modo”, explica.