A música Brasileira e a censura da Ditadura Militar
29 de julho de 2011
JEOCAZ LEE-MEDDI Quando o golpe militar foi deflagrado, em 1964, ironicamente o Brasil tinha na época, os movimentos de bases político-sociais mais organizados da sua história. Sindicatos, movimento estudantil, movimentos de trabalhadores do campo, movimentos de base dos militares de esquerda dentro das forças armadas, todos estavam engajados e articulados em entidades como a UNE (União Nacional dos Estudantes), o CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), o PUA (Pacto da Unidade e Ação), etc, que tinham grande representatividade diante dos destinos políticos da nação. Com a implantação da ditadura, todas essas entidades foram asfixiadas, sendo extintas ou a cair na clandestinidade. Em 1968, os estudantes continuavam a ser os maiores inimigos do regime militar. Reprimidos em suas entidades, passaram a ter voz através da música. A Música Popular Brasileira começa a atingir as grandes massas, ousando a falar o que não era permitido à nação. Diante da força dos festivais da MPB, no final da década de sessenta, o regime militar vê-se ameaçado. Movimentos como a Tropicália, com a sua irreverência mais de teor social-cultural do que político-engajado, passou a incomodar os militares. A censura passou a ser a melhor forma da ditadura combater as músicas de protesto e de cunho que pudesse extrapolar a moral da sociedade dominante e amiga do regime. Com a promulgação do AI-5, em 1968, esta censura à arte institucionalizou-se. A MPB sofreu amputações de versos em várias das suas canções, quando não eram totalmente censuradas. Para censurar a arte e as suas vertentes, foi criada a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), por onde deveriam previamente, passar todas as canções antes de executados nos meios públicos. Esta censura prévia não obedecia a qualquer critério, os censores poderiam vetar tanto por motivos políticos, ou de proteção à moral vigente, como por simplesmente não perceberem o que o autor queria dizer com o conteúdo. A censura além de cerceadora, era de uma imbecilidade jamais repetida na história cultural brasileira. Os Perseguidos do Pré-AI-5 Antes mesmo de deflagrado o AI-5, alguns representantes incipientes da MPB já eram vistos pelos militares como inimigos do regime, entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Taiguara e Geraldo Vandré. A intervenção de Caetano Veloso era mais no sentido da contracultura do que contra o regime militar. Os tropicalistas estavam mais próximos dos acontecimentos do Maio de 1968 em Paris, do que das doutrinas de esquerda que vigoravam na época, como o marxismo-leninismo soviético e o maoísmo chinês. Mas os militares não souberam identificar esta diferença, perseguindo Caetano Veloso e Gilberto Gil pela irreverência constrangedora que causavam. Na época da prisão dos dois cantores, em dezembro de 1968, os militares tinham de concreto contra eles, a acusação de que tinham desrespeitado o Hino Nacional, cantando-o aos moldes do tropicalismo na boate Sucata, e uma ação que queria mover um grupo de católicos fervorosos, ofendidos pela gravação do “Hino do Senhor do Bonfim” (Petion de Vilar – João Antônio Wanderley), no álbum “Tropicália ou Panis et Circenses” (1968). Juntou-se a isto a provocação de Caetano Veloso na antevéspera do natal de 1968, ao cantar “Noite Feliz” no programa de televisão “Divino Maravilhoso”, apontando uma arma na cabeça. O resultado foi a prisão e o exílio dos dois baianos em Londres, de 1969 a 1972. Ainda do repertório do álbum mítico “Tropicália ou Panis et Circenses” , a música “Geléia Geral” (Gilberto Gil – Torquato Neto), sofreu o veto da censura por ser considerada de conteúdo política contestatória, além de segundo os censores, fazer um retrato equivocado da situação pela qual passava o país. Ao retornar do exílio, Caetano Veloso e Gilberto Gil sofreram com a perseguição da ditadura e da censura. Em 1973, Caetano Veloso teve a sua canção “Deus e o Diabo”, vetada por causa do último verso “Dos bofes do meu Brasil”. Diante do veto, a gravadora solicitou recurso, foi sugerido pelo censor que o autor substituísse a palavra “bofes”. Mas um segundo censor menciona os versos “o carnaval é invenção do diabo que Deus abençoou” e “Cidade Maravilhosa/ Dos bofes do meu Brasil”, como ofensivos às tradições religiosas. Em 1975, o álbum “Jóia” trazia na sua capa Caetano Veloso, sua então mulher Dedé e o filho Moreno, completamente nus, com o desenho de algumas pombas a cobrir-lhe a genitália. Censurada, o álbum foi relançado com uma nova capa, onde restaram apenas as pombas. Geraldo Vandré tornou-se o inimigo número um do regime militar. A sua canção “Caminhando (Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores)”, que ficou com o polêmico segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1968, tornou-se um hino contra a ditadura militar, cantado por toda a juventude engajada do Brasil de 1968. Esta canção, afirmam alguns analistas de história, foi uma das responsáveis pela promulgação do AI-5. Ficou proibida de ser cantada e executada em todo país. Só voltaria a ser ressuscitada em 1979, após a abertura política e a anistia, quando a cantora Simone a cantou em um show, no Canecão. Perseguido pelo regime, Geraldo Vandré esteve exilado de 1969 a 1973. Após o exílio, jamais conseguiu recuperar a carreira interrompida pela censura da ditadura militar. Calava-se uma expressiva carreira emprestada ao combate à ditadura. Taiguara, uma das mais belas vozes masculinas da MPB, interpretou com maestria diversos gêneros musicais. Foi um dos cantores que mais se opôs contra a repressão da ditadura militar. Sua obra pagou o preço da perseguição e da censura. Deparou-se com a atenção da censura em 1971, que esteve atenta às canções do álbum “Carne e Osso”. Em 1973 teve 11 músicas proibidas. Perseguido pela censura, Taiguara teve muitas das suas músicas assinadas por Ge Chalar da Silva, sua esposa na época. Exilado em Londres, Taiguara gravou o álbum “Let the Children Hear the Music“, em inglês. O disco foi proibido de ser lançado, pela EMI, por decisão da polícia federal brasileira. O compositor recorreu ao Conselho Superior de Censura, em 1982, tendo o disco finalmente liberado. Chico Buarque, o Alvo Predileto da Censura Militar Tendo silenciado e asfixiado Geraldo Vandré, os militares elegeram o seu novo inimigo do regime: Chico Buarque de Hollanda. No período que durou a censura e o regime militar, Chico Buarque foi o compositor e cantor mais censurado. A sua obra sofreu respingos da censura em todas as vertentes, tanto nas canções de protesto, quanto nas que feriam os costumes morais da época. Os problemas de Chico Buarque com a censura começaram junto com a sua carreira. Em 1966, a música “Tamandaré”, incluída no repertório do show “Meu Refrão”, com Odete Lara e MPB-4, é proibida após seis meses em cartaz, por conter frases consideradas ofensivas ao patrono da marinha. Era o começo de um longo namoro entre a censura e a obra de Chico Buarque. Exilado na Itália, de 1969 a 1970, Chico Buarque sofreria com a perseguição da censura após o retorno ao Brasil. Em 1970, recém chegado do exílio, o compositor enviou a música “Apesar de Você” para a aprovação da censura, tendo a certeza que a música seria vetada. Inesperadamente a canção foi aprovada, sendo gravada imediatamente em compacto, tornando-se um sucesso instantâneo. Já se tinha vendido mais de 100 mil cópias, quando um jornal comentou que a música referia-se ao presidente Médici. Revelado o ardil, o exército brasileiro invadiu a fábrica da Philips, apreendendo todos os discos, destruindo-os. Na confusão, esqueceram de destruir a matriz. Em 1973 Chico Buarque sofreria todas as censuras possíveis. A peça “Calabar, ou o Elogio à Traição”, escrita em parceria com Ruy Guerra, foi vetada pela censura. As conseqüências da proibição viriam no seu álbum, “Calabar”, também daquele ano. A capa do disco trazia a palavra “Calabar” pichada num muro. Os censores concluíram que aquela palavra pichada tinha um significado subversivo, o que resultou na proibição da capa. A resposta de Chico Buarque foi lançar o álbum com uma capa totalmente branca e sem título. O disco trazia o registro das canções da peça vetada, por isto teve várias músicas (todas elas em parceria com Ruy Guerra) que amargaram nas malhas da censura. “Vence na Vida Quem Diz Sim” teve a letra totalmente censurada, sendo gravada no disco uma versão instrumental; “Ana de Amsterdam” teve vários trechos censurados. “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, que fazia parte deste disco, alcançaria grande sucesso quando gravada por Ney Matogrosso, em 1978, quando foi escolhida como tema de abertura da novela da tevê Globo “Pecado Rasgado”, na versão original da música o verso “Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor“, foi substituído por “Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor“. “Fado Tropical” teve proibido parte de um texto declamado por Ruy Guerra, além da frase “além da sífilis, é claro”, herança portuguesa, segundo a personagem Mathias, no sangue brasileiro. “Bárbara”, um dueto entre as personagens Ana de Amsterdam e Bárbara, teve cortada a palavra “duas”, por sugerir um relacionamento homossexual entre elas. Tanto “Ana de Amsterdam” quanto “Bárbara”, já tinham sofrido os mesmos cortes no álbum “Caetano e Chico Juntos Ao Vivo”, ali substituídos por palmas. Ainda no registro do encontro de Chico Buarque e Caetano Veloso, além da censura às duas canções citadas, “Partido Alto” (Chico Buarque), interpretada por Caetano Veloso, sofreu alterações na letra, sendo substituídas as palavras “brasileiro” por “batuqueiro” e “pouca titica” por “pobre coisica”. Diante de tantas mutilações da censura, o álbum “Calabar”, com capa branca, de Chico Buarque, foi um fracasso de vendas. Após o fracasso comercial , a Philips decidiu recolher o disco com capa branca, relançando-o semanas depois, com uma nova capa, trazendo apenas com uma fotografia do artista, de perfil, com o título “Chico Canta”. Naquele ano de 1973, a música “Cálice” (Chico Buarque – Gilberto Gil), foi proibida de ser gravada e cantada. Gilberto Gil desafiou a censura e cantou a música em um show para os estudantes, na Politécnica, em homenagem ao estudante de geologia da USP Alexandre Vanucchi Leme (o Minhoca), morto pela ditadura. Ainda naquele ano, no evento “Phono 73”, festival promovido pela Polygram, Chico Buarque e Gilberto Gil tiveram os microfones desligados quando iriam cantar “Cálice”, por decisão da própria produção do show, que não quis criar problemas com a ditadura. Em 1974 a censura não dá tréguas ao artista. Impedido de gravar a si mesmo, Chico Buarque lança um disco, Sinal Fechado (1974), com composições de outros autores. Diante de tantas canções vetadas, a sofrer uma perseguição acirrada, Chico Buarque cria os pseudônimos de Julinho da Adelaide e Leonel Paiva. É sob o heterônimo do Julinho da Adelaide que a censura deixa passar canções de críticas inteligentes à ditadura, lidas nas entrelinhas: “Jorge Maravilha”, que trazia o verso “Você não gosta de mim mas sua filha gosta”, que era lida como uma referência ao então presidente Geisel, cuja filha Amália Lucy, teria dito em entrevista, que admirava as canções do Chico Buarque. “Acorda Amor”, outra canção liberada do Julinho da Adelaide, era uma referência clara aos órgãos da repressão, que vinham buscar cidadãos suspeitos de subversivos em suas casas, levando-os em uma viatura, desaparecendo com eles. Diante da polícia repressiva, ele chamava pelo ladrão. “Milagre Brasileiro” também levou a assinatura de Julinho da Adelaide. Outro clássico da MPB que sofreu uma censura moralista foi “Atrás da Porta” (Chico Buarque – Francis Hime), o verso original “E me agarrei nos teus cabelos, nos teus pêlos”, seria substituído por “E me agarrei nos teus cabelos, no teu peito”, a censura achava a palavra “pêlos” de caráter indecente. Outra canção vetada de Chico Buarque foi “Tanto Mar”, uma homenagem do artista à Revolução dos Cravos em Portugal. Por ter sido uma revolução considerada socialista, a canção foi proibida. Seria gravada no álbum “Chico Buarque & Maria Bethânia Ao Vivo” (1975), numa versão instrumental. Mais tarde, em 1978, seria liberada com uma outra letra. Curiosamente, a versão original, sem cortes e cantada de “Tanto Mar”, consta no mesmo álbum “Chico Buarque & Maria Bethânia Ao Vivo” lançado em Portugal. Quando o AI-5 foi extinto, em 1978, Chico Buarque vingou-se dos anos de censura, gravou “Cálice”, regravou “Apesar de Você”, além de criar músicas provocantes, que afrontavam à moral da época, como “Folhetim“, que descrevia uma prostituta, ou “Geni e o Zepelim” e “Não Sonho Mais”, temas de dois travestis, Genivaldo da peça “A Ópera do Malandro” e Eloína, do filme “A República dos Assassinos”, respectivamente. 1973, o Ano Negro da Censura às Músicas da MPB Chico Buarque não teria sido o único cantor da MPB a sofrer mutilações na sua obra naquele ![]() Foi no tumultuado ano de 1973, que a banda Secos & Molhados explodiu, conquistando o país inteiro. O público dos Secos & Molhados, devido à proposta inovadora e ao seu carisma, era composto por todas as idades, inclusive por crianças e por adolescentes. Os três integrantes da banda eram Ney Matogrosso, Gerson Conrad e João Ricardo, que se apresentavam com os rostos pintados. Ney Matogrosso além de trazer a cara pintada, tinha uma voz de timbre totalmente diferente da de um homem cantor, um aspecto andrógeno e apresentava-se entre plumas, sem camisa. Os pêlos do peito do cantor e os seus frenéticos rebolados, incomodaram à censura, à moral e aos seus bons costumes vigentes, que proibiu que as câmeras da televisão focassem o cantor de perto, sendo permitido apenas aparecer o rosto em close. Assim apareceriam os Secos & Molhados em um clipe do recém estreado “Fantástico”, programa da Rede Globo. Além da capa de “Calabar”, também em 1973, Gal Costa teve censurada a capa do disco “Índia”, por trazer um close frontal da cantora vestida de uma tanga minúscula, e na contra-capa fotografias da mesma de seios nus, vestida de índia. A gravadora Philips comercializou o álbum coberto por um envelope opaco, de plástico azul. Do mesmo álbum, a música “Presente Cotidiano”, de Luiz Melodia, foi proibida de tocar em rádios e locais públicos. Em 1984, já no fim da ditadura, pós Diretas Já, Gal Costa teria outra canção proibida pela censura de ser tocada em público: “Vaca Profana” (Caetano Veloso), do álbum “Profana”. Ainda naquele tenso 1973, uma reportagem da revista Veja, dava conhecimento de que o álbum de Gonzaguinha, “Luiz Gonzaga JR.” (1973), era resultado do corte feito pela censura de 15 músicas. Ainda em 1973, Raul Seixas teria 18 composições vetadas pela censura. Luiz Melodia, além de ter “Presente Cotidiano” proibida de ser executada nas rádios, teve várias palavras excluídas ou alteradas das canções do seu disco de estréia, e várias músicas vetadas na íntegra. Linguagem Poética e Coloquial Sofrem Censuras Na ignorância cega da censura, sem uma lógica que a sustentasse, até o poeta Mário de Andrade foi vetado. O fato inusitado aconteceu em 1970, quando a gravadora Festa decidiu homenagear os 25 anos da morte do poeta, preparando um disco com alguns dos seus mais conhecidos poemas. Após ser submetido à censura, o projeto teve seis poemas proibidos, entre eles “Ode ao Burguês” e “Lira Paulistana”. Os vetos foram justificados pelos censores como estéticos, “falta de gosto”. O que se concluía era que, os censores jamais tinham ouvido falar em Mário de Andrade, confundindo-o com um autor vulgar do Brasil da época. Outro exemplo eloqüente da ignorância e do despreparo dos censores, foi com o compositor e cantor Adoniran Barbosa. Conhecido como o mais paulistano dos compositores, Adoniran Barbosa usava em suas canções o jeito coloquial de falar dos paulistanos. Não querendo problemas com a censura, em 1973 o artista decidiu lançar um álbum com várias canções já gravadas na década de cinqüenta. Inesperadamente, cinco das suas canções foram vetadas, mesmo não sendo inéditas. Diante da linguagem coloquial de “Samba do Arnesto” (Adoniran Barbosa – Alocin), que trazia nos seus versos “O Arnesto nos convidou prum samba/ Ele mora no Brás/ Móis fumo/ Num encontremo ninguém/ Fiquemo cuma baita duma réiva/ Da outra veiz nóis num vai mais (Nóis num semo tatu)”, o censor só liberaria a música se ele regravasse cantando assim: “Ficamos com um baita de uma raiva/ Em outra vez nós não vamos mais (Nós não somos tatus)”. Na letra da música “Tiro ao Álvaro” (Adoniran Barbosa – Oswaldo Moles), a censora faz um círculo nas palavras “tauba”, “revorve” e “artormove”, concluindo que a “falta de gosto impede a liberação da letra”. Para que pudessem ser aprovadas, “Samba do Arnesto” e “Tiro ao Álvaro”, teriam que virar “Samba do Ernesto” e “Tiro ao Alvo”. Tiveram o mesmo destino “Já Fui uma Brasa” (Adoniran Barbosa – Marcos César), “Eu também um dia fui uma brasa. E acendi muita lenha no fogão” e “O Casamento do Moacir” (Adoniran Barbosa – Oswaldo Moles), “A turma da favela convidaram-nos para irmos assistir o casamento da Gabriela com o Moacir“. “O Casamento do Moacir” foi considerada de “péssimo gosto” pela censora Eugênia Costa Rodrigues. Diante da censura, Adoniran Barbosa não mudou a sua obra, deixou para gravar as músicas mais tarde, quando a burrice já tivesse passado. Outro poeta que teve problemas com a censura foi Vinícius de Moraes. Sua música “Paiol de Pólvora” (Vinícius de Moraes – Toquinho), feita para a trilha sonora de “O Bem-Amado”, foi proibida de ser o tema de abertura da novela, em 1973, por causa do verso “estamos sentados em um paiol de pólvora”, sendo substituída na abertura pela música “O Bem Amado” (Vinícius de Moraes – Toquinho), interpretada pelo coral da Orquestra Som Livre. Também a belíssima canção “Valsa do Bordel” (Vinícius de Moraes – Toquinho), sobre a vida de uma velha prostituta, esteve proibida por dez anos. Vinícius cantava esta música em shows, ironicamente chamando-a de “A Valsa da Pura”, por causa da censura. Paulinho da Viola, em 1971, teve no seu álbum “Paulinho da Viola”, duas canções proibidas: “Chico Brito” (Wilson Batista – Afonso Teixeira), música composta em 1949, e “Um Barato, Meu Sapato” (Paulinho da Viola – Milton Nascimento), ambas vetadas sob a alegação de que evidenciavam o clima marginal do samba. Outros Tantos Vetos Vale registrar, ainda, que em 1972, Jards Macalé teria que reescrever sete vezes a letra de “Revendo Amigos” (Jards Macalé – Waly Sailormoon), do álbum “Movimento dos Barcos”. Sérgio Bittencourt, jornalista e compositor, filho de Jacob do Bandolim, em 1970, teve a sua música “Acorda, Alice”, proibida pela censura da ditadura militar por causa do verso “Acorda, Alice/ Que o país das maravilhas acabou”. Esta canção seria gravada por Waleska já na época da abertura política. Rita Lee teve as músicas “Moleque Sacana” (Rita Lee e Mu) e “Gente Fina” (Rita Lee) censuradas, a primeira por causa da palavra sacana, considerada obscena, a segunda porque poderia ferir os bons costumes da época. Carlos Lyra sentiu o gosto da censura com a sua música “Herói do Medo”, proibida por causa dos versos “odeio a mãe por ter parido” e “o passatempo estéril dos covardes“. Carlos Lyra não alterou o conteúdo da letra, preferiu sair do país. Belchior, que durante muito tempo foi considerado autor marginal, teve a música “Os Doze Pares de França” (Belchior – Toquinho) censurada, porque para os censores, os autores vangloriavam a França, fazendo dele um país melhor para se viver do que o Brasil. Também a canção “Pequeno Mapa do Tempo” (Belchior), de 1977, uma crítica implícita ao regime, por causa dos versos “eu tenho medo e medo está por fora” e “eu tenho medo em que chegue a hora, em que eu precise entrar no avião“, uma alusão ao exílio, os censores concluíram que a música trazia mensagem de protesto político. Ao contrário do que se pensa, o cantor e compositor Luiz Ayrão foi um dos artistas brasileiros que mais contestou a ditadura militar. A sua música “Quem Eu Devo é Que Deve Morrer”, tem como tema uma dívida pessoal que só será paga se Deus quiser. Também a dívida externa brasileira encontrava-se nessas condições. Luiz Ayrão faz um samba provocativo. Diante da afirmação do verso “quem eu devo é que deve morrer“, a canção é vetada, sendo a proibição justificada pela censura porque a letra era um incentivo ao homicídio, com uma mensagem de caráter negativo. Sueli Costa deu a canção “Cordilheira” (Sueli Costa – Paulo César Pinheiro) para Erasmo Carlos gravar. Feito o registro, a canção jamais saiu, sendo proibida. Os autores chegaram a ir a Brasília em busca de uma explicação para o veto. Encontram o silêncio dos censores, sem nenhuma justificativa. Mas os versos falavam por si: “Eu quero ver a procissão dos suicidas, caminhando para a morte pelo bem de nossas vidas”. “Cordilheira” é uma das mais belas canções de teor contestatório já feita no Brasil. Quando liberada, seria gravada por Simone, em 1979, no álbum “Pedaços”. O registro de Erasmo Carlos só saiu em uma caixa de cds comemorativos à carreira do cantor. Outra canção censurada de Sueli Costa foi “Altos e Baixos” (Sueli Costa – Aldir Blanc), que cantava de forma densa uma cena de agressão entre um casal, que trazia um casamento desgastado. A música falava de uísque, Dietil, Diempax, e foi justamente por ter citado o nome do ansiolítico Diempax, que a canção foi censurada. Elis Regina conseguiria a liberação da música, gravando-a no seu álbum “Essa Mulher” (1979). O Brega ou Popularesco, Nada Escapa à Censura Como já se pôde observar , a censura da ditadura militar não obedecia a nenhum critério. Qualquer ameaça não só ao regime por ela imposto ao país, como à sociedade conservadora que a ajudou a ascender ao poder e nele continuar por mais de duas décadas. Vestido de uma moral hipócrita, o regime militar barrava qualquer obra que suspeitasse ofender à moral, ou que se mostrasse obscena a essa moral. Em um mesmo contesto, tanto Chico Buarque, quanto Odair José, um cantor e compositor de sucessos popularescos, sem vínculos com qualquer militância política, ou mesmo o genial e popular Genival Lacerda, sofriam os reveses da censura. “Tanto Mar” (Chico Buarque), “Pare de Tomar a Pílula” (Odair José) e “Severina Xique Xique”, apesar de canções antagônicas, de vertentes diversas dentro da música brasileira, oscilando entre a canção política e a considerada “brega” ou “pimba”, eram consideradas pela censura um perigo latente ao regime e à moral que se construía naquela época. Em 1975, já Genival Lacerda tinha transformado a sua música “Severina Xique Xique” (Genival Lacerda – João Gonçalves) em um grande sucesso de público no nordeste brasileiro, quando foi vítima do preconceito das famílias do Ceará, que acusavam a palavra “boutique” de ter duplo sentido, ofendendo os bons costumes do lugar. Diante do protesto, o departamento regional da polícia federal do Ceará encaminhou a letra à Divisão de Censura de Brasília. Surpreendentemente, o técnico de censura de Brasília, mantém a liberação da música e afirma que a canção “é um veículo de integração da nacionalidade“. Este fato prova que a censura não vinha só do regime militar, mas da sociedade que apoiava este regime, e que muitas vezes, era mais repressiva e conservadora do que ele. Dentro do popularesco da canção brasileira, Odair José foi um dos compositores que mais sofreu com a censura. “O Motel” (Odair José), teve só pelo seu título, o veto da censura. Revelar a intimidade de um casal naqueles preconceituosos anos setenta era inconcebível para a censura militar. Outra música de Odair José vetada pela censura foi “A Primeira Noite”, considerada inconveniente para ser consumida pelo público jovem e adolescente da época. O autor mudou o título da canção para “Noite de Desejos”, conseguindo liberá-la e gravá-la. A mais polêmica música de Odair José foi “Pare de Tomar a Pílula”, onde ele pedia para a namorada deixar de usar anticoncepcionais para que pudesse engravidá-la. Vista à ótica do tempo, a canção chega a ser ingênua, de uma simplicidade quase grotesca, absolutamente inofensiva para um público atual, mas aviltante para as velhas senhoras que em 1964, saíram às ruas de rosários nas mãos, saudando, em nome da família brasileira, os golpistas militares. Dentro da corrente popularesca, a censura não poupou nem mesmo a dupla Dom e Ravel, que em 1970, tornara-se a menina dos olhos da repressão, com uma música que exaltava a nação, tornando-se o hino da ditadura: “Eu Te Amo, Meu Brasil”. O motivo que levou o regime a interrogar Dom e Ravel, foi quando eles apresentaram, em 1972, a canção “A Árvore”, os censores desconfiaram do trecho “venha, vamos penetrar”. Além de imaginar que o tema que falava de árvores, seria supostamente sobre a canabilis (planta da maconha). A música foi proibida, apesar de ter uma gravação da banda Os Incríveis, nunca foi lançada. A esta altura, a incoerência da censura já dava passagem para uma certa esquizofrenia social e política, sem ideologia ou razão. Dentro de um processo repressivo, todos os argumentos tornam-se incoerentes, a razão é substituída pela força bruta. A censura não constrói uma lógica, muitas vezes ela percorre movida pelas decisões pessoais dos censores. Para manter as necessidades de uma ditadura, a censura fazia parte da arma de propaganda do estado repressivo, podava a liberdade de expressão, principalmente as que feriam os princípios que justificam um governo ilegítimo, emanado da força, da opressão e da traição aos princípios da democracia. |
A música Brasileira e a censura da Ditadura Militar
JEOCAZ LEE-MEDDI Quando o golpe militar foi deflagrado, em 1964, ironicamente o Brasil tinha na época, os movimentos de bases político-sociais mais organizados da sua história. Sindicatos, movimento estudantil, movimentos de trabalhadores do campo, movimentos de base dos militares de esquerda dentro das forças armadas, todos estavam engajados e articulados em entidades como a UNE (União Nacional dos Estudantes), o CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), o PUA (Pacto da Unidade e Ação), etc, que tinham grande representatividade diante dos destinos políticos da nação. Com a implantação da ditadura, todas essas entidades foram asfixiadas, sendo extintas ou a cair na clandestinidade. Em 1968, os estudantes continuavam a ser os maiores inimigos do regime militar. Reprimidos em suas entidades, passaram a ter voz através da música. A Música Popular Brasileira começa a atingir as grandes massas, ousando a falar o que não era permitido à nação. Diante da força dos festivais da MPB, no final da década de sessenta, o regime militar vê-se ameaçado. Movimentos como a Tropicália, com a sua irreverência mais de teor social-cultural do que político-engajado, passou a incomodar os militares. A censura passou a ser a melhor forma da ditadura combater as músicas de protesto e de cunho que pudesse extrapolar a moral da sociedade dominante e amiga do regime. Com a promulgação do AI-5, em 1968, esta censura à arte institucionalizou-se. A MPB sofreu amputações de versos em várias das suas canções, quando não eram totalmente censuradas. Para censurar a arte e as suas vertentes, foi criada a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), por onde deveriam previamente, passar todas as canções antes de executados nos meios públicos. Esta censura prévia não obedecia a qualquer critério, os censores poderiam vetar tanto por motivos políticos, ou de proteção à moral vigente, como por simplesmente não perceberem o que o autor queria dizer com o conteúdo. A censura além de cerceadora, era de uma imbecilidade jamais repetida na história cultural brasileira. Os Perseguidos do Pré-AI-5 Antes mesmo de deflagrado o AI-5, alguns representantes incipientes da MPB já eram vistos pelos militares como inimigos do regime, entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Taiguara e Geraldo Vandré. A intervenção de Caetano Veloso era mais no sentido da contracultura do que contra o regime militar. Os tropicalistas estavam mais próximos dos acontecimentos do Maio de 1968 em Paris, do que das doutrinas de esquerda que vigoravam na época, como o marxismo-leninismo soviético e o maoísmo chinês. Mas os militares não souberam identificar esta diferença, perseguindo Caetano Veloso e Gilberto Gil pela irreverência constrangedora que causavam. Na época da prisão dos dois cantores, em dezembro de 1968, os militares tinham de concreto contra eles, a acusação de que tinham desrespeitado o Hino Nacional, cantando-o aos moldes do tropicalismo na boate Sucata, e uma ação que queria mover um grupo de católicos fervorosos, ofendidos pela gravação do “Hino do Senhor do Bonfim” (Petion de Vilar – João Antônio Wanderley), no álbum “Tropicália ou Panis et Circenses” (1968). Juntou-se a isto a provocação de Caetano Veloso na antevéspera do natal de 1968, ao cantar “Noite Feliz” no programa de televisão “Divino Maravilhoso”, apontando uma arma na cabeça. O resultado foi a prisão e o exílio dos dois baianos em Londres, de 1969 a 1972. Ainda do repertório do álbum mítico “Tropicália ou Panis et Circenses” , a música “Geléia Geral” (Gilberto Gil – Torquato Neto), sofreu o veto da censura por ser considerada de conteúdo política contestatória, além de segundo os censores, fazer um retrato equivocado da situação pela qual passava o país. Ao retornar do exílio, Caetano Veloso e Gilberto Gil sofreram com a perseguição da ditadura e da censura. Em 1973, Caetano Veloso teve a sua canção “Deus e o Diabo”, vetada por causa do último verso “Dos bofes do meu Brasil”. Diante do veto, a gravadora solicitou recurso, foi sugerido pelo censor que o autor substituísse a palavra “bofes”. Mas um segundo censor menciona os versos “o carnaval é invenção do diabo que Deus abençoou” e “Cidade Maravilhosa/ Dos bofes do meu Brasil”, como ofensivos às tradições religiosas. Em 1975, o álbum “Jóia” trazia na sua capa Caetano Veloso, sua então mulher Dedé e o filho Moreno, completamente nus, com o desenho de algumas pombas a cobrir-lhe a genitália. Censurada, o álbum foi relançado com uma nova capa, onde restaram apenas as pombas. Geraldo Vandré tornou-se o inimigo número um do regime militar. A sua canção “Caminhando (Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores)”, que ficou com o polêmico segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1968, tornou-se um hino contra a ditadura militar, cantado por toda a juventude engajada do Brasil de 1968. Esta canção, afirmam alguns analistas de história, foi uma das responsáveis pela promulgação do AI-5. Ficou proibida de ser cantada e executada em todo país. Só voltaria a ser ressuscitada em 1979, após a abertura política e a anistia, quando a cantora Simone a cantou em um show, no Canecão. Perseguido pelo regime, Geraldo Vandré esteve exilado de 1969 a 1973. Após o exílio, jamais conseguiu recuperar a carreira interrompida pela censura da ditadura militar. Calava-se uma expressiva carreira emprestada ao combate à ditadura. Taiguara, uma das mais belas vozes masculinas da MPB, interpretou com maestria diversos gêneros musicais. Foi um dos cantores que mais se opôs contra a repressão da ditadura militar. Sua obra pagou o preço da perseguição e da censura. Deparou-se com a atenção da censura em 1971, que esteve atenta às canções do álbum “Carne e Osso”. Em 1973 teve 11 músicas proibidas. Perseguido pela censura, Taiguara teve muitas das suas músicas assinadas por Ge Chalar da Silva, sua esposa na época. Exilado em Londres, Taiguara gravou o álbum “Let the Children Hear the Music“, em inglês. O disco foi proibido de ser lançado, pela EMI, por decisão da polícia federal brasileira. O compositor recorreu ao Conselho Superior de Censura, em 1982, tendo o disco finalmente liberado. Chico Buarque, o Alvo Predileto da Censura Militar Tendo silenciado e asfixiado Geraldo Vandré, os militares elegeram o seu novo inimigo do regime: Chico Buarque de Hollanda. No período que durou a censura e o regime militar, Chico Buarque foi o compositor e cantor mais censurado. A sua obra sofreu respingos da censura em todas as vertentes, tanto nas canções de protesto, quanto nas que feriam os costumes morais da época. Os problemas de Chico Buarque com a censura começaram junto com a sua carreira. Em 1966, a música “Tamandaré”, incluída no repertório do show “Meu Refrão”, com Odete Lara e MPB-4, é proibida após seis meses em cartaz, por conter frases consideradas ofensivas ao patrono da marinha. Era o começo de um longo namoro entre a censura e a obra de Chico Buarque. Exilado na Itália, de 1969 a 1970, Chico Buarque sofreria com a perseguição da censura após o retorno ao Brasil. Em 1970, recém chegado do exílio, o compositor enviou a música “Apesar de Você” para a aprovação da censura, tendo a certeza que a música seria vetada. Inesperadamente a canção foi aprovada, sendo gravada imediatamente em compacto, tornando-se um sucesso instantâneo. Já se tinha vendido mais de 100 mil cópias, quando um jornal comentou que a música referia-se ao presidente Médici. Revelado o ardil, o exército brasileiro invadiu a fábrica da Philips, apreendendo todos os discos, destruindo-os. Na confusão, esqueceram de destruir a matriz. Em 1973 Chico Buarque sofreria todas as censuras possíveis. A peça “Calabar, ou o Elogio à Traição”, escrita em parceria com Ruy Guerra, foi vetada pela censura. As conseqüências da proibição viriam no seu álbum, “Calabar”, também daquele ano. A capa do disco trazia a palavra “Calabar” pichada num muro. Os censores concluíram que aquela palavra pichada tinha um significado subversivo, o que resultou na proibição da capa. A resposta de Chico Buarque foi lançar o álbum com uma capa totalmente branca e sem título. O disco trazia o registro das canções da peça vetada, por isto teve várias músicas (todas elas em parceria com Ruy Guerra) que amargaram nas malhas da censura. “Vence na Vida Quem Diz Sim” teve a letra totalmente censurada, sendo gravada no disco uma versão instrumental; “Ana de Amsterdam” teve vários trechos censurados. “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, que fazia parte deste disco, alcançaria grande sucesso quando gravada por Ney Matogrosso, em 1978, quando foi escolhida como tema de abertura da novela da tevê Globo “Pecado Rasgado”, na versão original da música o verso “Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor“, foi substituído por “Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor“. “Fado Tropical” teve proibido parte de um texto declamado por Ruy Guerra, além da frase “além da sífilis, é claro”, herança portuguesa, segundo a personagem Mathias, no sangue brasileiro. “Bárbara”, um dueto entre as personagens Ana de Amsterdam e Bárbara, teve cortada a palavra “duas”, por sugerir um relacionamento homossexual entre elas. Tanto “Ana de Amsterdam” quanto “Bárbara”, já tinham sofrido os mesmos cortes no álbum “Caetano e Chico Juntos Ao Vivo”, ali substituídos por palmas. Ainda no registro do encontro de Chico Buarque e Caetano Veloso, além da censura às duas canções citadas, “Partido Alto” (Chico Buarque), interpretada por Caetano Veloso, sofreu alterações na letra, sendo substituídas as palavras “brasileiro” por “batuqueiro” e “pouca titica” por “pobre coisica”. Diante de tantas mutilações da censura, o álbum “Calabar”, com capa branca, de Chico Buarque, foi um fracasso de vendas. Após o fracasso comercial , a Philips decidiu recolher o disco com capa branca, relançando-o semanas depois, com uma nova capa, trazendo apenas com uma fotografia do artista, de perfil, com o título “Chico Canta”. Naquele ano de 1973, a música “Cálice” (Chico Buarque – Gilberto Gil), foi proibida de ser gravada e cantada. Gilberto Gil desafiou a censura e cantou a música em um show para os estudantes, na Politécnica, em homenagem ao estudante de geologia da USP Alexandre Vanucchi Leme (o Minhoca), morto pela ditadura. Ainda naquele ano, no evento “Phono 73”, festival promovido pela Polygram, Chico Buarque e Gilberto Gil tiveram os microfones desligados quando iriam cantar “Cálice”, por decisão da própria produção do show, que não quis criar problemas com a ditadura. Em 1974 a censura não dá tréguas ao artista. Impedido de gravar a si mesmo, Chico Buarque lança um disco, Sinal Fechado (1974), com composições de outros autores. Diante de tantas canções vetadas, a sofrer uma perseguição acirrada, Chico Buarque cria os pseudônimos de Julinho da Adelaide e Leonel Paiva. É sob o heterônimo do Julinho da Adelaide que a censura deixa passar canções de críticas inteligentes à ditadura, lidas nas entrelinhas: “Jorge Maravilha”, que trazia o verso “Você não gosta de mim mas sua filha gosta”, que era lida como uma referência ao então presidente Geisel, cuja filha Amália Lucy, teria dito em entrevista, que admirava as canções do Chico Buarque. “Acorda Amor”, outra canção liberada do Julinho da Adelaide, era uma referência clara aos órgãos da repressão, que vinham buscar cidadãos suspeitos de subversivos em suas casas, levando-os em uma viatura, desaparecendo com eles. Diante da polícia repressiva, ele chamava pelo ladrão. “Milagre Brasileiro” também levou a assinatura de Julinho da Adelaide. Outro clássico da MPB que sofreu uma censura moralista foi “Atrás da Porta” (Chico Buarque – Francis Hime), o verso original “E me agarrei nos teus cabelos, nos teus pêlos”, seria substituído por “E me agarrei nos teus cabelos, no teu peito”, a censura achava a palavra “pêlos” de caráter indecente. Outra canção vetada de Chico Buarque foi “Tanto Mar”, uma homenagem do artista à Revolução dos Cravos em Portugal. Por ter sido uma revolução considerada socialista, a canção foi proibida. Seria gravada no álbum “Chico Buarque & Maria Bethânia Ao Vivo” (1975), numa versão instrumental. Mais tarde, em 1978, seria liberada com uma outra letra. Curiosamente, a versão original, sem cortes e cantada de “Tanto Mar”, consta no mesmo álbum “Chico Buarque & Maria Bethânia Ao Vivo” lançado em Portugal. Quando o AI-5 foi extinto, em 1978, Chico Buarque vingou-se dos anos de censura, gravou “Cálice”, regravou “Apesar de Você”, além de criar músicas provocantes, que afrontavam à moral da época, como “Folhetim“, que descrevia uma prostituta, ou “Geni e o Zepelim” e “Não Sonho Mais”, temas de dois travestis, Genivaldo da peça “A Ópera do Malandro” e Eloína, do filme “A República dos Assassinos”, respectivamente. 1973, o Ano Negro da Censura às Músicas da MPB Chico Buarque não teria sido o único cantor da MPB a sofrer mutilações na sua obra naquele ![]() Foi no tumultuado ano de 1973, que a banda Secos & Molhados explodiu, conquistando o país inteiro. O público dos Secos & Molhados, devido à proposta inovadora e ao seu carisma, era composto por todas as idades, inclusive por crianças e por adolescentes. Os três integrantes da banda eram Ney Matogrosso, Gerson Conrad e João Ricardo, que se apresentavam com os rostos pintados. Ney Matogrosso além de trazer a cara pintada, tinha uma voz de timbre totalmente diferente da de um homem cantor, um aspecto andrógeno e apresentava-se entre plumas, sem camisa. Os pêlos do peito do cantor e os seus frenéticos rebolados, incomodaram à censura, à moral e aos seus bons costumes vigentes, que proibiu que as câmeras da televisão focassem o cantor de perto, sendo permitido apenas aparecer o rosto em close. Assim apareceriam os Secos & Molhados em um clipe do recém estreado “Fantástico”, programa da Rede Globo. Além da capa de “Calabar”, também em 1973, Gal Costa teve censurada a capa do disco “Índia”, por trazer um close frontal da cantora vestida de uma tanga minúscula, e na contra-capa fotografias da mesma de seios nus, vestida de índia. A gravadora Philips comercializou o álbum coberto por um envelope opaco, de plástico azul. Do mesmo álbum, a música “Presente Cotidiano”, de Luiz Melodia, foi proibida de tocar em rádios e locais públicos. Em 1984, já no fim da ditadura, pós Diretas Já, Gal Costa teria outra canção proibida pela censura de ser tocada em público: “Vaca Profana” (Caetano Veloso), do álbum “Profana”. Ainda naquele tenso 1973, uma reportagem da revista Veja, dava conhecimento de que o álbum de Gonzaguinha, “Luiz Gonzaga JR.” (1973), era resultado do corte feito pela censura de 15 músicas. Ainda em 1973, Raul Seixas teria 18 composições vetadas pela censura. Luiz Melodia, além de ter “Presente Cotidiano” proibida de ser executada nas rádios, teve várias palavras excluídas ou alteradas das canções do seu disco de estréia, e várias músicas vetadas na íntegra. Linguagem Poética e Coloquial Sofrem Censuras Na ignorância cega da censura, sem uma lógica que a sustentasse, até o poeta Mário de Andrade foi vetado. O fato inusitado aconteceu em 1970, quando a gravadora Festa decidiu homenagear os 25 anos da morte do poeta, preparando um disco com alguns dos seus mais conhecidos poemas. Após ser submetido à censura, o projeto teve seis poemas proibidos, entre eles “Ode ao Burguês” e “Lira Paulistana”. Os vetos foram justificados pelos censores como estéticos, “falta de gosto”. O que se concluía era que, os censores jamais tinham ouvido falar em Mário de Andrade, confundindo-o com um autor vulgar do Brasil da época. Outro exemplo eloqüente da ignorância e do despreparo dos censores, foi com o compositor e cantor Adoniran Barbosa. Conhecido como o mais paulistano dos compositores, Adoniran Barbosa usava em suas canções o jeito coloquial de falar dos paulistanos. Não querendo problemas com a censura, em 1973 o artista decidiu lançar um álbum com várias canções já gravadas na década de cinqüenta. Inesperadamente, cinco das suas canções foram vetadas, mesmo não sendo inéditas. Diante da linguagem coloquial de “Samba do Arnesto” (Adoniran Barbosa – Alocin), que trazia nos seus versos “O Arnesto nos convidou prum samba/ Ele mora no Brás/ Móis fumo/ Num encontremo ninguém/ Fiquemo cuma baita duma réiva/ Da outra veiz nóis num vai mais (Nóis num semo tatu)”, o censor só liberaria a música se ele regravasse cantando assim: “Ficamos com um baita de uma raiva/ Em outra vez nós não vamos mais (Nós não somos tatus)”. Na letra da música “Tiro ao Álvaro” (Adoniran Barbosa – Oswaldo Moles), a censora faz um círculo nas palavras “tauba”, “revorve” e “artormove”, concluindo que a “falta de gosto impede a liberação da letra”. Para que pudessem ser aprovadas, “Samba do Arnesto” e “Tiro ao Álvaro”, teriam que virar “Samba do Ernesto” e “Tiro ao Alvo”. Tiveram o mesmo destino “Já Fui uma Brasa” (Adoniran Barbosa – Marcos César), “Eu também um dia fui uma brasa. E acendi muita lenha no fogão” e “O Casamento do Moacir” (Adoniran Barbosa – Oswaldo Moles), “A turma da favela convidaram-nos para irmos assistir o casamento da Gabriela com o Moacir“. “O Casamento do Moacir” foi considerada de “péssimo gosto” pela censora Eugênia Costa Rodrigues. Diante da censura, Adoniran Barbosa não mudou a sua obra, deixou para gravar as músicas mais tarde, quando a burrice já tivesse passado. Outro poeta que teve problemas com a censura foi Vinícius de Moraes. Sua música “Paiol de Pólvora” (Vinícius de Moraes – Toquinho), feita para a trilha sonora de “O Bem-Amado”, foi proibida de ser o tema de abertura da novela, em 1973, por causa do verso “estamos sentados em um paiol de pólvora”, sendo substituída na abertura pela música “O Bem Amado” (Vinícius de Moraes – Toquinho), interpretada pelo coral da Orquestra Som Livre. Também a belíssima canção “Valsa do Bordel” (Vinícius de Moraes – Toquinho), sobre a vida de uma velha prostituta, esteve proibida por dez anos. Vinícius cantava esta música em shows, ironicamente chamando-a de “A Valsa da Pura”, por causa da censura. Paulinho da Viola, em 1971, teve no seu álbum “Paulinho da Viola”, duas canções proibidas: “Chico Brito” (Wilson Batista – Afonso Teixeira), música composta em 1949, e “Um Barato, Meu Sapato” (Paulinho da Viola – Milton Nascimento), ambas vetadas sob a alegação de que evidenciavam o clima marginal do samba. Outros Tantos Vetos Vale registrar, ainda, que em 1972, Jards Macalé teria que reescrever sete vezes a letra de “Revendo Amigos” (Jards Macalé – Waly Sailormoon), do álbum “Movimento dos Barcos”. Sérgio Bittencourt, jornalista e compositor, filho de Jacob do Bandolim, em 1970, teve a sua música “Acorda, Alice”, proibida pela censura da ditadura militar por causa do verso “Acorda, Alice/ Que o país das maravilhas acabou”. Esta canção seria gravada por Waleska já na época da abertura política. Rita Lee teve as músicas “Moleque Sacana” (Rita Lee e Mu) e “Gente Fina” (Rita Lee) censuradas, a primeira por causa da palavra sacana, considerada obscena, a segunda porque poderia ferir os bons costumes da época. Carlos Lyra sentiu o gosto da censura com a sua música “Herói do Medo”, proibida por causa dos versos “odeio a mãe por ter parido” e “o passatempo estéril dos covardes“. Carlos Lyra não alterou o conteúdo da letra, preferiu sair do país. Belchior, que durante muito tempo foi considerado autor marginal, teve a música “Os Doze Pares de França” (Belchior – Toquinho) censurada, porque para os censores, os autores vangloriavam a França, fazendo dele um país melhor para se viver do que o Brasil. Também a canção “Pequeno Mapa do Tempo” (Belchior), de 1977, uma crítica implícita ao regime, por causa dos versos “eu tenho medo e medo está por fora” e “eu tenho medo em que chegue a hora, em que eu precise entrar no avião“, uma alusão ao exílio, os censores concluíram que a música trazia mensagem de protesto político. Ao contrário do que se pensa, o cantor e compositor Luiz Ayrão foi um dos artistas brasileiros que mais contestou a ditadura militar. A sua música “Quem Eu Devo é Que Deve Morrer”, tem como tema uma dívida pessoal que só será paga se Deus quiser. Também a dívida externa brasileira encontrava-se nessas condições. Luiz Ayrão faz um samba provocativo. Diante da afirmação do verso “quem eu devo é que deve morrer“, a canção é vetada, sendo a proibição justificada pela censura porque a letra era um incentivo ao homicídio, com uma mensagem de caráter negativo. Sueli Costa deu a canção “Cordilheira” (Sueli Costa – Paulo César Pinheiro) para Erasmo Carlos gravar. Feito o registro, a canção jamais saiu, sendo proibida. Os autores chegaram a ir a Brasília em busca de uma explicação para o veto. Encontram o silêncio dos censores, sem nenhuma justificativa. Mas os versos falavam por si: “Eu quero ver a procissão dos suicidas, caminhando para a morte pelo bem de nossas vidas”. “Cordilheira” é uma das mais belas canções de teor contestatório já feita no Brasil. Quando liberada, seria gravada por Simone, em 1979, no álbum “Pedaços”. O registro de Erasmo Carlos só saiu em uma caixa de cds comemorativos à carreira do cantor. Outra canção censurada de Sueli Costa foi “Altos e Baixos” (Sueli Costa – Aldir Blanc), que cantava de forma densa uma cena de agressão entre um casal, que trazia um casamento desgastado. A música falava de uísque, Dietil, Diempax, e foi justamente por ter citado o nome do ansiolítico Diempax, que a canção foi censurada. Elis Regina conseguiria a liberação da música, gravando-a no seu álbum “Essa Mulher” (1979). O Brega ou Popularesco, Nada Escapa à Censura Como já se pôde observar , a censura da ditadura militar não obedecia a nenhum critério. Qualquer ameaça não só ao regime por ela imposto ao país, como à sociedade conservadora que a ajudou a ascender ao poder e nele continuar por mais de duas décadas. Vestido de uma moral hipócrita, o regime militar barrava qualquer obra que suspeitasse ofender à moral, ou que se mostrasse obscena a essa moral. Em um mesmo contesto, tanto Chico Buarque, quanto Odair José, um cantor e compositor de sucessos popularescos, sem vínculos com qualquer militância política, ou mesmo o genial e popular Genival Lacerda, sofriam os reveses da censura. “Tanto Mar” (Chico Buarque), “Pare de Tomar a Pílula” (Odair José) e “Severina Xique Xique”, apesar de canções antagônicas, de vertentes diversas dentro da música brasileira, oscilando entre a canção política e a considerada “brega” ou “pimba”, eram consideradas pela censura um perigo latente ao regime e à moral que se construía naquela época. Em 1975, já Genival Lacerda tinha transformado a sua música “Severina Xique Xique” (Genival Lacerda – João Gonçalves) em um grande sucesso de público no nordeste brasileiro, quando foi vítima do preconceito das famílias do Ceará, que acusavam a palavra “boutique” de ter duplo sentido, ofendendo os bons costumes do lugar. Diante do protesto, o departamento regional da polícia federal do Ceará encaminhou a letra à Divisão de Censura de Brasília. Surpreendentemente, o técnico de censura de Brasília, mantém a liberação da música e afirma que a canção “é um veículo de integração da nacionalidade“. Este fato prova que a censura não vinha só do regime militar, mas da sociedade que apoiava este regime, e que muitas vezes, era mais repressiva e conservadora do que ele. Dentro do popularesco da canção brasileira, Odair José foi um dos compositores que mais sofreu com a censura. “O Motel” (Odair José), teve só pelo seu título, o veto da censura. Revelar a intimidade de um casal naqueles preconceituosos anos setenta era inconcebível para a censura militar. Outra música de Odair José vetada pela censura foi “A Primeira Noite”, considerada inconveniente para ser consumida pelo público jovem e adolescente da época. O autor mudou o título da canção para “Noite de Desejos”, conseguindo liberá-la e gravá-la. A mais polêmica música de Odair José foi “Pare de Tomar a Pílula”, onde ele pedia para a namorada deixar de usar anticoncepcionais para que pudesse engravidá-la. Vista à ótica do tempo, a canção chega a ser ingênua, de uma simplicidade quase grotesca, absolutamente inofensiva para um público atual, mas aviltante para as velhas senhoras que em 1964, saíram às ruas de rosários nas mãos, saudando, em nome da família brasileira, os golpistas militares. Dentro da corrente popularesca, a censura não poupou nem mesmo a dupla Dom e Ravel, que em 1970, tornara-se a menina dos olhos da repressão, com uma música que exaltava a nação, tornando-se o hino da ditadura: “Eu Te Amo, Meu Brasil”. O motivo que levou o regime a interrogar Dom e Ravel, foi quando eles apresentaram, em 1972, a canção “A Árvore”, os censores desconfiaram do trecho “venha, vamos penetrar”. Além de imaginar que o tema que falava de árvores, seria supostamente sobre a canabilis (planta da maconha). A música foi proibida, apesar de ter uma gravação da banda Os Incríveis, nunca foi lançada. A esta altura, a incoerência da censura já dava passagem para uma certa esquizofrenia social e política, sem ideologia ou razão. Dentro de um processo repressivo, todos os argumentos tornam-se incoerentes, a razão é substituída pela força bruta. A censura não constrói uma lógica, muitas vezes ela percorre movida pelas decisões pessoais dos censores. Para manter as necessidades de uma ditadura, a censura fazia parte da arma de propaganda do estado repressivo, podava a liberdade de expressão, principalmente as que feriam os princípios que justificam um governo ilegítimo, emanado da força, da opressão e da traição aos princípios da democracia. |
Projeto da UnB cria 'Google Earth' para Brasil da era colonial
"O nosso projeto é colaborativo. Queremos que ele funcione como uma rede de contatos sobre a história colonial do Brasil. Isso pode incluir genealogistas, historiadores locais e outras pessoas"
TIAGO GIL
Professor Departamento de História da Universidade de BrasíliaProjeto da UnB cria 'Google Earth' para Brasil da era colonial
Historiadores e geógrafos estão unindo mapas que vão do século 16 ao 19 com as imagens digitais de satélites
TIAGO GIL
Professor Departamento de História da Universidade de BrasíliaProjeto da UnB cria 'Google Earth' para Brasil da era colonial
Historiadores e geógrafos estão unindo mapas que vão do século 16 ao 19 com as imagens digitais de satélites
Versão inicial já pode ser acessada de graça; ideia é criar ferramenta para estudar dinâmica espacial do povoamento
Além de ajudar gente conectada a achar restaurantes ou fugir do trânsito, o Google Earth está dando uma mãozinha a historiadores e geógrafos que querem criar um mapa mais preciso dos altos e baixos do Brasil colonial.
O projeto, coordenado pela UnB (Universidade de Brasília) e com participação de várias outras universidades federais, está fundindo os recursos do Google Earth com cerca de 2.000 mapas do império colonial português.
VERSÃO ALFA
Já é possível conferir parte do resultado no endereço eletrônico atlas.cliomatica.com. "Ainda é uma versão beta; aliás, é quase uma versão alfa", brinca Tiago Gil, do Departamento de História da UnB, referindo-se às letras gregas usadas para designar versões preliminares de um programa de computador.
Uma forma mais polida do site deve estar disponível no mês que vem, afirma Gil, que coordena o projeto, batizado de Atlas Digital da América Lusa, ao lado de Leonardo Barleta, da UFPR (Universidade Federal do Paraná).
A ideia dos pesquisadores é sobrepor os mapas do Brasil-Colônia às imagens de satélite atuais, empregando também recursos interativos.
Em vários casos, vai ser possível ver como o povoamento avançou e mapear com precisão os ciclos regionais de prosperidade (e bancarrota) durante a era colonial.
Um caso emblemático é o de São João Marcos, vila do século 18 que prosperou com a lavoura de café mas acabou sendo engolida por uma represa nos anos 1940.
CIDADES PERDIDAS
"Uma das pesquisas que o projeto está tocando, desenvolvida pelas bolsistas Mariana Leonardo, Rafaela do Nascimento e Luiza Moretti, é justamente sobre essas 'cidades perdidas', localidades que ou não cresceram ou tiveram sua ascensão e queda", diz Gil.
"É o caso de vários outros pontos da América Lusa, particularmente nas regiões mineradoras, como Minas, Mato Grosso e Goiás", explica.
Felizmente, o sumiço de São João Marcos sob as águas é um caso extremo.
"O mais frequente é a estagnação dos espaços, que muitas vezes são incorporados por regiões metropolitanas ou simplesmente se mantém como pequenas povoações", afirma o pesquisador.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, foi uma mera decisão política a responsável por transformar "Porto Alegre de Viamão" na capital da região.
Já a própria Viamão hoje é mera cidade-dormitório de Porto Alegre. Do mesmo modo, pouca gente hoje em dia conhece Mostardas e Bojuru, localidades gaúchas que eram relevantes no século 18.
Segundo o especialista da UnB, a escassez de fontes não tem sido um grande problema. Nas áreas urbanas, o material até que é farto. Bem mais difícil é colocar num mapa moderno as fazendas coloniais.
"Você pode ver isso nas descrições de limites de propriedades: a terra começa no pé de um morro, fazendo limite com um pântano, por um lado, e com a terra do vizinho, por outro. E o vizinho diz a mesma coisa", conta.
COLABORATIVO
Além do seu lado Google Earth, o atlas também tem uma faceta que lembra a Wikipédia, a enciclopédia da internet que pode ser editada por leigos mundo afora.
"O projeto é colaborativo. Queremos que ele seja uma rede de contatos sobre a história colonial do Brasil. Isso pode incluir genealogistas, historiadores locais e outras pessoas", afirma Gil.
Leite condensado com limão
27 de julho de 2011
A história ensinada às crianças e adolescentes dos Colégios Militares
24 de julho de 2011
29/06/2011
Introdução
Em 13 de junho de 2010, a jornalista Ana Pinho trouxe à tona, em reportagem da Folha de São Paulo, mais um problema envolvendo política, memória e ensino de História: o livro didático adotado pelos Colégios Militares traz uma versão antidemocrática sobre a ditadura militar brasileira. O material que orienta o ensino de história de filhos de militares do exército e outros alunos admitidos por concurso é produzido pela Bibliex - Biblioteca do Exército - e vendido aos estudantes. Trata-se da obra "História do Brasil: Império e República", de Aldo Fernandes, Maurício Soares e Neide Annarumma, que integra a Coleção Marechal Trompowsky. [1] A primeira edição é de 2001 e a que temos em mãos é a quarta, revisada, de 2005. Na obra, afirma-se que o 31 de Março de 1964 foi uma revolução democrática, reagindo às orquestrações do Partido Comunista, e também para moralizar a administração pública, e, portanto não se configuraria como um golpe contra um governo democraticamente eleito. O fechamento do regime é explicado como intransigência da oposição emedebista. As torturas e assassinatos cometidos por setores das Forças Armadas no período não são mencionados.
A matéria suscitou posições contrárias ao uso da obra, publicadas no próprio jornal, tanto de leitores quanto de articulistas da Folha de São Paulo, como Hélio Schartzman e Melchiades Filho. O assunto foi debatido na lista de discussão do Grupo de Trabalho de Ensino de História da ANPUH. Em 05 de Agosto de 2010, a Associação Nacional de História (ANPUH) enviou carta ao Ministério da Educação, Ministério da Defesa e Casa Civil da Presidência da República, manifestando preocupação diante do fato de que o ensino de história nos Colégios Militares legitima o golpe de 1964, com evidente desconsideração das mais básicas evidências factuais e da historiografia que se constituiu sobre o período. A carta apelou também para o significado profundo do ensino e da aprendizagem nos moldes apresentados pelo material didático dos Colégios Militares:
"O ensino da História é partícipe direto da produção de subjetividades, da formação de consciências, de formas de ver e interpretar o mundo, ele participa diretamente da formação ética e política do sujeito e do cidadão, por isso é de suma importância a avaliação de que versões do passado estão sendo ensinadas. Que subjetividades, que tipo de consciência, que visões de mundo podem estar sendo formadas por uma versão da história que justifica e legitima um golpe contra as instituições ainda em nome de uma pretensa defesa da democracia e da civilização ocidental e cristã, que cidadãos estão sendo formados por uma literatura que justifica, legitima e esconde o arbítrio, a tortura e a violência. Estes livros são no mínimo um duvidoso exemplo de comportamento ético."
Por fim, de todas as cartas enviadas, apenas da do Ministério da Educação obteve resposta, por parte da Coordenação Geral de Materiais Didáticos, vinculada à Secretaria de Educação Básica do Ministério. Na correspondência, a coordenadora geral limita-se a citar o artigo 3º. da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que menciona os princípios gerais do ensino (entre eles, "liberdade de aprender, ensinar, pesquisa e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber"; "pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas" e "respeito à liberdade e apreço à tolerância") e o artigo 83, que regula o ensino militar, dando-lhe a autonomia de uma lei específica.
A resposta da COGEAM, se considerada em suas consequências, coloca em xeque a função de regulação do Estado, bem como de orientação temporal da historiografia. Se todos os discursos sobre a história forem igualmente válidos, então todo discurso sobre a história seria igualmente merecedor de crédito diante de seu grupo de interesse, e de tolerância do Estado, sem limites. E ignoraríamos o acúmulo e os avanços qualitativos do conhecimento histórico acadêmico, desenvolvido pelos profissionais de História. Entretanto, para além de qualquer exercício de relativismo histórico oportunista, os limites dos discursos sobre a História são postos pelo texto constitucional, a partir da definição dos crimes. Por exemplo, o MEC tem o dever agir contra uma escola ou conjunto de escolas que professe alguma superioridade ou inferioridade racial, uma vez que isso constitui a base para que alguém incorra no crime previsto no art. 5º., inciso XLII "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão." E o que dizer de um conjunto de escolas que legitime, justifique ou se omita quanto ao que está disposto no mesmo artigo 5º, inciso XLIII, que considera crimes inafiançáveis e não anistiáveis a "prática da tortura", ou ainda no inciso XLIV "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático." ? É evidente que os valores democráticos que embasam a sociedade brasileira não são compatíveis com os valores que embasam a obra didática em discussão, e que expressam uma determinada linha de pensamento de parte da corporação militar quanto à história recente. [2]
Por sua vez, os limites postos pela responsabilidade social da pesquisa histórica estão nas afirmações que são possíveis sobre a história, considerado o estado atual do conhecimento. O estado atual do conhecimento histórico, por sua vez, tem sido uma das principais balizas com as quais o Estado brasileiro, por meio do Programa Nacional do Livro Didático, tem avaliado a qualidade do material que distribui para as escolas públicas nacionais. O que está em tela, portanto, é a coerência de princípios para os materiais didáticos de história que são avalizados pelo Estado para todos os alunos de escolas públicas, independente do subsistema ou órgão ao qual se vinculam.
A seleção dentro da LDB, feita pela coordenadora da COGEAM em sua resposta à entidade, quer lembrar à ANPUH determinados princípios, com isso sugerindo que os mesmos não estariam sendo observados no pedido feito pela entidade. Do mesmo modo que selecionou aqueles artigos, poderia ter selecionado o artigo 4º. e seu inciso IX, que reza que o dever do Estado com a educação pública será efetivado através da garantia de "padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem." É esse ponto que deve ser considerado, pois não se trata de uma questão de diferenças ideológicas que mereceriam tolerâncias, mas sim uma questão de defesa dos princípios fundamentais do Estado democrático de direito, como vimos acima, bem como de uma questão de garantia da qualidade do ensino.
Uma análise do volume de História do Brasil: Império e República
O melhor parâmetro de qualidade que dispomos para ser usado em uma avaliação de livro didático são os critérios do PNLD. Isso porque se trata de um programa que seleciona seus avaliadores entre os melhores pesquisadores e professores nos diversos campos da história e do ensino de história. Esse pessoal estuda e redefine continuamente uma ficha de itens que reflete o estado atual das demandas e exigências não só do campo da História, como da Educação e da própria sociedade, consolidada na legislação vigente.
O livro "História do Brasil: Império e República" seria aprovado no Programa Nacional do Livro Didático? A resposta é negativa. Em outros termos, os alunos dos Colégios Militares estão sendo privados do acesso à aprendizagem nos parâmetros contemporâneos de qualidade exigidos pelo Ministério da Educação dos livros didáticos das editoras privadas. A demonstração disso pode ser feita através da submissão do livro didático a alguns itens centrais da ficha de avaliação do PNLD, disponível na internet [3]. Evidentemente, essa análise é parcial porque se trabalha apenas com o livro do aluno e o caderno de exercícios (que é consumível, avesso às regras do PNLD), já que não tivemos acesso ainda ao manual do professor e ao primeiro volume da coleção, que trata da América Portuguesa.
Como não tivemos acesso ao manual do professor, não é possível avaliar o livro no que se refere a esse quesito. No sítio de internet da editora responsável, a Biblioteca do Exército, não há manual do professor à venda para esta obra, o que leva a crer que o mesmo é dispensado. Não há, portanto, nenhuma concepção pedagógica ou historiográfica que seja explicitada pelos autores. No entanto, é possível notar alguns traços orientadores. A forma predominante de relação proposta entre os alunos e o conhecimento histórico é a de memorização, uma vez que o conteúdo é exposto de modo declaratório e prescritivo. Isso é confirmado no caderno de atividades, em volume separado, constituído por exercícios em que, na maior parte das vezes, o conteúdo do manual deve ser repetido nas respostas dos alunos.
A vasta maioria dos exercícios é recolhida dos exames dos próprios colégios militares brasileiros. Essa opção cria uma situação de aprendizagem que é desfavorável ao pensamento crítico e ao raciocínio histórico, pois os fatos e processos são expostos na condição de verdades sintéticas e não questionáveis. O aluno não terá acesso à noção de que o conhecimento histórico é construído, dotado de historicidade, relacionado a um contexto, e assim por diante. As poucas fontes primárias que são compiladas para a obra não servem para demonstrar a característica histórica do próprio conhecimento histórico. Pelo contrário, funcionam como ilustrações não-problematizadas do texto básico, ou fontes de autoridade para o mesmo. É o caso das diversas citações lapidares de Caxias na parte referente ao Brasil imperial.
Adicionalmente, sobre a estrutura da obra, cumpre indicar que sua linha central é a descrição de acontecimentos da história política tradicional. Esta opção é tão marcada que os acontecimentos e processos que não são classificados na esfera política são tratados em partes separadas do texto, que abordam, também isoladamente, a cultura, a economia e as relações sociais. Assim isoladas as esferas da experiência humana, não se facilita a compreensão de que elas são inter-relacionadas e se influenciam mutuamente; os acontecimentos parecem brotar do acaso, e não da intricada relação entre economia, política, cultura e sociedade.
Uma concepção de conhecimento em que predomina a cronologia, a linearidade e os fatos de ordem política, com espaço limitado e subordinado para os outros campos da vida humana. Para essa configuração historiográfica, a categoria "tradicional" se aplica. No que se refere à atualização historiográfica, a obra se ressente da incorporação de bibliografia recente. Para termos uma ideia disso, basta dizer que as obras referenciadas na bibliografia têm uma idade média de 28 anos entre a edição consultada e 2005, que é o ano da edição do presente livro didático. Além disso, estão ausentes as obras que marcaram a historiografia brasileira nos últimos 20 anos, e que se pronunciam sobre os assuntos enfocados na obra.
Pedagogicamente, as concepções que se pode deduzir a partir do estudo do livro dos alunos indicam, em primeiro lugar, uma patente carência de problematização e reconstrução de saberes. O conjunto do livro do aluno e do caderno de atividades indica uma pobreza profunda de capacidades cognitivas envolvidas. A demanda cognitiva central é memorizar, acompanhada por identificar, relacionar e diferenciar, correlatas àquela. Demandas mais sofisticadas, como argumentar, comparar, criticar, analisar, sintetizar, não estão presentes de modo significativo.
A análise do item "Correção e atualização de conceitos, informações e procedimentos pertinentes ao campo da história" pode ser iniciada com uma discussão sobre a estratégia de tratamento dos conteúdos históricos. Como a concepção é de uma exposição linear e enciclopédica da sequência de conteúdos que compõe o modelo tradicional de história nacional, o problema que se colocou para os autores é de fazer caber tantos assuntos numa obra para alunos do Ensino Fundamental 2. A solução foi resumir ao máximo determinados temas, mas essa tática acaba levando a problemas de compreensão, pois faltam informações mínimas para atribuir significado ao que é narrado. Pode-se perceber que a obra é prejudicada por uma tática de resumos para explicar fatos e processos de uma lista tradicional de conteúdos, com o que se perde a clareza em diversos pontos. Como exemplo de uma prática constante ao longo do livro, podemos citar a comparação entre o pós-independência no Brasil e nos demais países da América do Sul:
"Na América Latina, as circunstâncias impostas pelo processo histórico quiseram que os sonhos dos grandes libertadores - José Bonifácio de Andrada e Silva, San Martin e Simon Bolívar - se cumprissem segundo o modelo colonizador e a vocação história de suas metrópoles ibéricas, Portugal e Espanha. No entanto, os rumos tomados não confirmaram os anseios de Simon Bolívar, que viu o desmoronar de sua obra, quando o jugo imperial da Espanha foi substituído pelo mando dos "novos déspotas", os caudilhos." (p. 58, grifo no original)
Para compreender esse trecho, falta ao leitor saber:
a) quais foram as "circunstâncias impostas pelo processo histórico"
b) quais eram os "sonhos dos grandes libertadores" (que são colocados como equivalentes, apesar das diferenças expressivas, sobretudo entre José Bonifácio e os libertadores hispano-americanos)
c) qual era o "o modelo colonizador e a vocação história de suas metrópoles ibéricas" e como se articulavam com os ideais independentistas.
Obs minha: Como assim as “circunstâncias impostas quiseram”? Circunstâncias não têm querer. Que epistemologia é essa? A ANPUH deveria ter questionado isso também.
Na página 189, reconhece-se que a cassação do Partido Comunista Brasileiro em 1947 respondeu a um contexto de Guerra Fria, relativizando a alegação jurídica de que o partido teria sido extinto por ser autoritário. Entretanto, em nenhum outro momento o aluno é informado sobre o que vem a ser essa expressão.
Esta falta de clareza devido à economia excessiva de detalhes (que por sua vez se deve à opção de dar conta de um amplo panorama tradicional de acontecimentos) espalha-se pela obra, tornando inviável a compreensão dos processos históricos. Muitos, incompreensíveis, somam-se à massa de dados que cumpre ao aluno memorizar, sem atribuir significado ou interpretar, ações que ficam em plano secundário.
Além disso, são comuns as excessivas simplificações explicativas e a redução das causas a uma única, não raro de caráter eventual. É o que ocorre, por exemplo, na explicação da renúncia do regente Feijó: ela teria se dado porque o regente não conseguiu organizar um partido para apoiá-lo (p. 19).
Na obra verificam-se diversos juízos de valor, sem argumentação que os sustente ou espaço para visões contrárias. Por exemplo, na p. 19, abaixo de uma definição de pátria por Olavo Bilac ("a paridade dos gostos e costumes, comunidade de línguas, coesão de leis, identidade de condições físicas e morais, com participação nas mesmas lembranças e nas mesmas esperanças), há a frase solta dos autores: "Durante a Primeira República isso nem sempre ocorreu". Como essa ressalva é feita apenas para a Primeira República, transmite-se a impressão de que em outros momentos aquela noção de pátria teria encontrado pleno acolhimento na realidade nacional.
Como não poderia deixar de ser, a explicação sobre o Golpe de 1964 e a ditadura militar é a maior expressão das características negativas da obra, e não por acaso o trecho que mais chamou a atenção de jornalistas e articulistas pelo seu conteúdo. Queremos demonstrar que o problema não está na opção política da obra, que deveria em tese ser tolerada, mas no fato de que essa opção política conduz a um ensino de história que não somente é de baixa qualidade, mas que beira as raias da desonestidade intelectual para manter uma versão conservadora dos acontecimentos. Omissão de informações, desconhecimento dos estudos acadêmicos aprofundados sobre o assunto, distorção de acontecimentos e processos e explicação por meio dos discursos políticos dos vencedores à época são consequências da estratégia estabelecida.
O primeiro elemento a ser considerado é o nome dado ao movimento, na página 199 Ao assumir a expressão "Revolução de 1964", a obra adere ao discurso político da época, em vez de referir-se aos estudos históricos e sociológicos que são considerados hoje o estado atual do conhecimento científico sobre o assunto. Para esses estudos, o movimento de derrubada do presidente João Goulart e a instauração de um novo governo em 1964 não constituem uma revolução, mas um golpe de estado. Sob o subtítulo "Revolução de 1964" ficam subsumidos os mandatos dos presidentes Jânio e Jango, estabelecendo uma estranha periodização em que os últimos governos do período democrático de 1945 a 1964 gravitam em torno do golpe.
A narrativa está envolvida em um tom que lembra teorias da conspiração. Exatamente no momento em que a esquerda começa a se fragmentar, os autores descrevem que ocorria uma orquestração revolucionária por obra do Partido Comunista. Entretanto, a linha do PCB nesses anos era de apoio crítico ao desenvolvimento econômico e a aliança com o que se chamava de "burguesia nacional". Em parte por conta dessa opção, em 1961 o PCB perdeu militantes para a organização de esquerda "POLOP", e em 1962 cindiu-se entre PCB e PCdoB. Deste modo é claro que a "orquestração comunista subversiva" corresponde ao discurso político da época, que precisava do fantasma comunista para justificar a quebra da ordem democrática, e não a uma análise fundamentada. Esse sujeito oculto chega a ser nominado como "comando subversivo", na p. 200, como se existisse uma coordenação mutuamente aceita entre os diversos grupos de esquerda, o que não era real. Ao mesmo tempo, se oculta a estruturação do golpe por meio do complexo IPES/IBAD, fartamente documentada e discutida, por exemplo, pela obra já clássica de Richard (René Armand) Dreifuss, "1964: a conquista do Estado", que funcionava como um estruturador de classes sociais dominantes, interesses estrangeiros e lideranças militares em torno de um novo projeto econômico e social que pudesse superar o desenvolvimentismo e o crescimento do poder de negociação das classes trabalhadoras através de seus sindicatos e movimentos. Na mesma página, são claros os juízos de valor na seleção da ilustração única, que é da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, e da descrição da mesma como "um espetáculo comovente".
A parcialidade continua ao descrever a greve dos marinheiros como indisciplina militar, epíteto do qual foram poupados, por exemplo, as revoltas militares tenentistas da década de 1920. O mau hábito do resumo excessivo complica a descrição do período ao afirmar que "uma inusitada reunião política nas dependências do Automóvel Clube do Brasil" agredia nação e significava uma manifestação de indisciplina. Sem a informação de quem participou da reunião e de qual era seu assunto, ao aluno só cabe crer na descrição.
Descreve-se o golpe como o resultado da ação de lideranças democráticas, civis e militares, "grupos moderados e respeitadores da lei e da ordem". Para além a dúvida sobre como um grupo de respeitadores da lei depõe um presidente legitimamente eleito e referendado também por um plebiscito, trata-se de uma descrição incompleta, pois não dá conta do conjunto de interesses e classes mobilizadas para o golpe, reduzindo-o a um movimento de poucos líderes militares apoiados de perto por alguns civis e de longe pela massa.
Também se descreve o regime de forma lacunar, tanto em suas motivações declaradas (combater a corrupção e a comunização e reorganizar a administração do país) quanto nas consequências efetivas de suas realizações. Por exemplo, o milagre econômico é explicado de modo desvinculado da carestia dos anos 70 e da crise econômica do início dos anos 80, embora sejam processos relacionados. A lacuna mais expressiva, entretanto, é o ciclo de violação dos direitos humanos, tortura, assassinato e desaparecimento de opositores políticos e seus familiares, realizados por setores das forças armadas e associados, ao arrepio inclusive das leis militares. Esse quadro, que seria impossível sem a suspensão de direitos em função do AI-5, é omitido. Omite-se que o recrudescimento da repressão militar chegou mesmo a ameaçar a autoridade do presidente Ernesto Geisel, que se viu na contingência de exonerar o Comandante do 2º Exército, general D'Ávila Mello por ter permitido as mortes de Manuel Fiel Filho e Vladimir Herzog, este nas dependências do exército em São Paulo. Também o tragicamente frustrado atentado terrorista do Riocentro, que estava sendo preparado por militares do exército, é omitido.
Com tantas omissões, fica impossível para o aluno entender que a Anistia também se referia ao perdão dos crimes cometidos por membros das forças armadas e seus associados na repressão aos opositores da ditadura. De um modo geral, todos os atos antidemocráticos da ditadura são explicados como reações à intransigência dos opositores, explicação que nem serve ao caso, pois transigência é possível num estado de relativa simetria entre as forças opostas, o que não está dado em uma ditadura.
[2] A ANPUH respondeu a esta carta da COGEAM lamentando e manifestando sua decepção com a postura de indiferença manifestada.
[3] Disponível em http://www.fnde.gov.br/index.php/ph-arquivos/category/12-guias-pnld-2011?download=40%3Apnld2011historia.
Publicado no Informativo Eletrônico da ANPUH
Informe ANPUH – Edição 15, ano 3.
A história ensinada às crianças e adolescentes dos Colégios Militares
29/06/2011
Introdução
Em 13 de junho de 2010, a jornalista Ana Pinho trouxe à tona, em reportagem da Folha de São Paulo, mais um problema envolvendo política, memória e ensino de História: o livro didático adotado pelos Colégios Militares traz uma versão antidemocrática sobre a ditadura militar brasileira. O material que orienta o ensino de história de filhos de militares do exército e outros alunos admitidos por concurso é produzido pela Bibliex - Biblioteca do Exército - e vendido aos estudantes. Trata-se da obra "História do Brasil: Império e República", de Aldo Fernandes, Maurício Soares e Neide Annarumma, que integra a Coleção Marechal Trompowsky. [1] A primeira edição é de 2001 e a que temos em mãos é a quarta, revisada, de 2005. Na obra, afirma-se que o 31 de Março de 1964 foi uma revolução democrática, reagindo às orquestrações do Partido Comunista, e também para moralizar a administração pública, e, portanto não se configuraria como um golpe contra um governo democraticamente eleito. O fechamento do regime é explicado como intransigência da oposição emedebista. As torturas e assassinatos cometidos por setores das Forças Armadas no período não são mencionados.
A matéria suscitou posições contrárias ao uso da obra, publicadas no próprio jornal, tanto de leitores quanto de articulistas da Folha de São Paulo, como Hélio Schartzman e Melchiades Filho. O assunto foi debatido na lista de discussão do Grupo de Trabalho de Ensino de História da ANPUH. Em 05 de Agosto de 2010, a Associação Nacional de História (ANPUH) enviou carta ao Ministério da Educação, Ministério da Defesa e Casa Civil da Presidência da República, manifestando preocupação diante do fato de que o ensino de história nos Colégios Militares legitima o golpe de 1964, com evidente desconsideração das mais básicas evidências factuais e da historiografia que se constituiu sobre o período. A carta apelou também para o significado profundo do ensino e da aprendizagem nos moldes apresentados pelo material didático dos Colégios Militares:
"O ensino da História é partícipe direto da produção de subjetividades, da formação de consciências, de formas de ver e interpretar o mundo, ele participa diretamente da formação ética e política do sujeito e do cidadão, por isso é de suma importância a avaliação de que versões do passado estão sendo ensinadas. Que subjetividades, que tipo de consciência, que visões de mundo podem estar sendo formadas por uma versão da história que justifica e legitima um golpe contra as instituições ainda em nome de uma pretensa defesa da democracia e da civilização ocidental e cristã, que cidadãos estão sendo formados por uma literatura que justifica, legitima e esconde o arbítrio, a tortura e a violência. Estes livros são no mínimo um duvidoso exemplo de comportamento ético."
Por fim, de todas as cartas enviadas, apenas da do Ministério da Educação obteve resposta, por parte da Coordenação Geral de Materiais Didáticos, vinculada à Secretaria de Educação Básica do Ministério. Na correspondência, a coordenadora geral limita-se a citar o artigo 3º. da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que menciona os princípios gerais do ensino (entre eles, "liberdade de aprender, ensinar, pesquisa e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber"; "pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas" e "respeito à liberdade e apreço à tolerância") e o artigo 83, que regula o ensino militar, dando-lhe a autonomia de uma lei específica.
A resposta da COGEAM, se considerada em suas consequências, coloca em xeque a função de regulação do Estado, bem como de orientação temporal da historiografia. Se todos os discursos sobre a história forem igualmente válidos, então todo discurso sobre a história seria igualmente merecedor de crédito diante de seu grupo de interesse, e de tolerância do Estado, sem limites. E ignoraríamos o acúmulo e os avanços qualitativos do conhecimento histórico acadêmico, desenvolvido pelos profissionais de História. Entretanto, para além de qualquer exercício de relativismo histórico oportunista, os limites dos discursos sobre a História são postos pelo texto constitucional, a partir da definição dos crimes. Por exemplo, o MEC tem o dever agir contra uma escola ou conjunto de escolas que professe alguma superioridade ou inferioridade racial, uma vez que isso constitui a base para que alguém incorra no crime previsto no art. 5º., inciso XLII "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão." E o que dizer de um conjunto de escolas que legitime, justifique ou se omita quanto ao que está disposto no mesmo artigo 5º, inciso XLIII, que considera crimes inafiançáveis e não anistiáveis a "prática da tortura", ou ainda no inciso XLIV "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático." ? É evidente que os valores democráticos que embasam a sociedade brasileira não são compatíveis com os valores que embasam a obra didática em discussão, e que expressam uma determinada linha de pensamento de parte da corporação militar quanto à história recente. [2]
Por sua vez, os limites postos pela responsabilidade social da pesquisa histórica estão nas afirmações que são possíveis sobre a história, considerado o estado atual do conhecimento. O estado atual do conhecimento histórico, por sua vez, tem sido uma das principais balizas com as quais o Estado brasileiro, por meio do Programa Nacional do Livro Didático, tem avaliado a qualidade do material que distribui para as escolas públicas nacionais. O que está em tela, portanto, é a coerência de princípios para os materiais didáticos de história que são avalizados pelo Estado para todos os alunos de escolas públicas, independente do subsistema ou órgão ao qual se vinculam.
A seleção dentro da LDB, feita pela coordenadora da COGEAM em sua resposta à entidade, quer lembrar à ANPUH determinados princípios, com isso sugerindo que os mesmos não estariam sendo observados no pedido feito pela entidade. Do mesmo modo que selecionou aqueles artigos, poderia ter selecionado o artigo 4º. e seu inciso IX, que reza que o dever do Estado com a educação pública será efetivado através da garantia de "padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem." É esse ponto que deve ser considerado, pois não se trata de uma questão de diferenças ideológicas que mereceriam tolerâncias, mas sim uma questão de defesa dos princípios fundamentais do Estado democrático de direito, como vimos acima, bem como de uma questão de garantia da qualidade do ensino.
Uma análise do volume de História do Brasil: Império e República
O melhor parâmetro de qualidade que dispomos para ser usado em uma avaliação de livro didático são os critérios do PNLD. Isso porque se trata de um programa que seleciona seus avaliadores entre os melhores pesquisadores e professores nos diversos campos da história e do ensino de história. Esse pessoal estuda e redefine continuamente uma ficha de itens que reflete o estado atual das demandas e exigências não só do campo da História, como da Educação e da própria sociedade, consolidada na legislação vigente.
O livro "História do Brasil: Império e República" seria aprovado no Programa Nacional do Livro Didático? A resposta é negativa. Em outros termos, os alunos dos Colégios Militares estão sendo privados do acesso à aprendizagem nos parâmetros contemporâneos de qualidade exigidos pelo Ministério da Educação dos livros didáticos das editoras privadas. A demonstração disso pode ser feita através da submissão do livro didático a alguns itens centrais da ficha de avaliação do PNLD, disponível na internet [3]. Evidentemente, essa análise é parcial porque se trabalha apenas com o livro do aluno e o caderno de exercícios (que é consumível, avesso às regras do PNLD), já que não tivemos acesso ainda ao manual do professor e ao primeiro volume da coleção, que trata da América Portuguesa.
Como não tivemos acesso ao manual do professor, não é possível avaliar o livro no que se refere a esse quesito. No sítio de internet da editora responsável, a Biblioteca do Exército, não há manual do professor à venda para esta obra, o que leva a crer que o mesmo é dispensado. Não há, portanto, nenhuma concepção pedagógica ou historiográfica que seja explicitada pelos autores. No entanto, é possível notar alguns traços orientadores. A forma predominante de relação proposta entre os alunos e o conhecimento histórico é a de memorização, uma vez que o conteúdo é exposto de modo declaratório e prescritivo. Isso é confirmado no caderno de atividades, em volume separado, constituído por exercícios em que, na maior parte das vezes, o conteúdo do manual deve ser repetido nas respostas dos alunos.
A vasta maioria dos exercícios é recolhida dos exames dos próprios colégios militares brasileiros. Essa opção cria uma situação de aprendizagem que é desfavorável ao pensamento crítico e ao raciocínio histórico, pois os fatos e processos são expostos na condição de verdades sintéticas e não questionáveis. O aluno não terá acesso à noção de que o conhecimento histórico é construído, dotado de historicidade, relacionado a um contexto, e assim por diante. As poucas fontes primárias que são compiladas para a obra não servem para demonstrar a característica histórica do próprio conhecimento histórico. Pelo contrário, funcionam como ilustrações não-problematizadas do texto básico, ou fontes de autoridade para o mesmo. É o caso das diversas citações lapidares de Caxias na parte referente ao Brasil imperial.
Adicionalmente, sobre a estrutura da obra, cumpre indicar que sua linha central é a descrição de acontecimentos da história política tradicional. Esta opção é tão marcada que os acontecimentos e processos que não são classificados na esfera política são tratados em partes separadas do texto, que abordam, também isoladamente, a cultura, a economia e as relações sociais. Assim isoladas as esferas da experiência humana, não se facilita a compreensão de que elas são inter-relacionadas e se influenciam mutuamente; os acontecimentos parecem brotar do acaso, e não da intricada relação entre economia, política, cultura e sociedade.
Uma concepção de conhecimento em que predomina a cronologia, a linearidade e os fatos de ordem política, com espaço limitado e subordinado para os outros campos da vida humana. Para essa configuração historiográfica, a categoria "tradicional" se aplica. No que se refere à atualização historiográfica, a obra se ressente da incorporação de bibliografia recente. Para termos uma ideia disso, basta dizer que as obras referenciadas na bibliografia têm uma idade média de 28 anos entre a edição consultada e 2005, que é o ano da edição do presente livro didático. Além disso, estão ausentes as obras que marcaram a historiografia brasileira nos últimos 20 anos, e que se pronunciam sobre os assuntos enfocados na obra.
Pedagogicamente, as concepções que se pode deduzir a partir do estudo do livro dos alunos indicam, em primeiro lugar, uma patente carência de problematização e reconstrução de saberes. O conjunto do livro do aluno e do caderno de atividades indica uma pobreza profunda de capacidades cognitivas envolvidas. A demanda cognitiva central é memorizar, acompanhada por identificar, relacionar e diferenciar, correlatas àquela. Demandas mais sofisticadas, como argumentar, comparar, criticar, analisar, sintetizar, não estão presentes de modo significativo.
A análise do item "Correção e atualização de conceitos, informações e procedimentos pertinentes ao campo da história" pode ser iniciada com uma discussão sobre a estratégia de tratamento dos conteúdos históricos. Como a concepção é de uma exposição linear e enciclopédica da sequência de conteúdos que compõe o modelo tradicional de história nacional, o problema que se colocou para os autores é de fazer caber tantos assuntos numa obra para alunos do Ensino Fundamental 2. A solução foi resumir ao máximo determinados temas, mas essa tática acaba levando a problemas de compreensão, pois faltam informações mínimas para atribuir significado ao que é narrado. Pode-se perceber que a obra é prejudicada por uma tática de resumos para explicar fatos e processos de uma lista tradicional de conteúdos, com o que se perde a clareza em diversos pontos. Como exemplo de uma prática constante ao longo do livro, podemos citar a comparação entre o pós-independência no Brasil e nos demais países da América do Sul:
"Na América Latina, as circunstâncias impostas pelo processo histórico quiseram que os sonhos dos grandes libertadores - José Bonifácio de Andrada e Silva, San Martin e Simon Bolívar - se cumprissem segundo o modelo colonizador e a vocação história de suas metrópoles ibéricas, Portugal e Espanha. No entanto, os rumos tomados não confirmaram os anseios de Simon Bolívar, que viu o desmoronar de sua obra, quando o jugo imperial da Espanha foi substituído pelo mando dos "novos déspotas", os caudilhos." (p. 58, grifo no original)
Para compreender esse trecho, falta ao leitor saber:
a) quais foram as "circunstâncias impostas pelo processo histórico"
b) quais eram os "sonhos dos grandes libertadores" (que são colocados como equivalentes, apesar das diferenças expressivas, sobretudo entre José Bonifácio e os libertadores hispano-americanos)
c) qual era o "o modelo colonizador e a vocação história de suas metrópoles ibéricas" e como se articulavam com os ideais independentistas.
Obs minha: Como assim as “circunstâncias impostas quiseram”? Circunstâncias não têm querer. Que epistemologia é essa? A ANPUH deveria ter questionado isso também.
Na página 189, reconhece-se que a cassação do Partido Comunista Brasileiro em 1947 respondeu a um contexto de Guerra Fria, relativizando a alegação jurídica de que o partido teria sido extinto por ser autoritário. Entretanto, em nenhum outro momento o aluno é informado sobre o que vem a ser essa expressão.
Esta falta de clareza devido à economia excessiva de detalhes (que por sua vez se deve à opção de dar conta de um amplo panorama tradicional de acontecimentos) espalha-se pela obra, tornando inviável a compreensão dos processos históricos. Muitos, incompreensíveis, somam-se à massa de dados que cumpre ao aluno memorizar, sem atribuir significado ou interpretar, ações que ficam em plano secundário.
Além disso, são comuns as excessivas simplificações explicativas e a redução das causas a uma única, não raro de caráter eventual. É o que ocorre, por exemplo, na explicação da renúncia do regente Feijó: ela teria se dado porque o regente não conseguiu organizar um partido para apoiá-lo (p. 19).
Na obra verificam-se diversos juízos de valor, sem argumentação que os sustente ou espaço para visões contrárias. Por exemplo, na p. 19, abaixo de uma definição de pátria por Olavo Bilac ("a paridade dos gostos e costumes, comunidade de línguas, coesão de leis, identidade de condições físicas e morais, com participação nas mesmas lembranças e nas mesmas esperanças), há a frase solta dos autores: "Durante a Primeira República isso nem sempre ocorreu". Como essa ressalva é feita apenas para a Primeira República, transmite-se a impressão de que em outros momentos aquela noção de pátria teria encontrado pleno acolhimento na realidade nacional.
Como não poderia deixar de ser, a explicação sobre o Golpe de 1964 e a ditadura militar é a maior expressão das características negativas da obra, e não por acaso o trecho que mais chamou a atenção de jornalistas e articulistas pelo seu conteúdo. Queremos demonstrar que o problema não está na opção política da obra, que deveria em tese ser tolerada, mas no fato de que essa opção política conduz a um ensino de história que não somente é de baixa qualidade, mas que beira as raias da desonestidade intelectual para manter uma versão conservadora dos acontecimentos. Omissão de informações, desconhecimento dos estudos acadêmicos aprofundados sobre o assunto, distorção de acontecimentos e processos e explicação por meio dos discursos políticos dos vencedores à época são consequências da estratégia estabelecida.
O primeiro elemento a ser considerado é o nome dado ao movimento, na página 199 Ao assumir a expressão "Revolução de 1964", a obra adere ao discurso político da época, em vez de referir-se aos estudos históricos e sociológicos que são considerados hoje o estado atual do conhecimento científico sobre o assunto. Para esses estudos, o movimento de derrubada do presidente João Goulart e a instauração de um novo governo em 1964 não constituem uma revolução, mas um golpe de estado. Sob o subtítulo "Revolução de 1964" ficam subsumidos os mandatos dos presidentes Jânio e Jango, estabelecendo uma estranha periodização em que os últimos governos do período democrático de 1945 a 1964 gravitam em torno do golpe.
A narrativa está envolvida em um tom que lembra teorias da conspiração. Exatamente no momento em que a esquerda começa a se fragmentar, os autores descrevem que ocorria uma orquestração revolucionária por obra do Partido Comunista. Entretanto, a linha do PCB nesses anos era de apoio crítico ao desenvolvimento econômico e a aliança com o que se chamava de "burguesia nacional". Em parte por conta dessa opção, em 1961 o PCB perdeu militantes para a organização de esquerda "POLOP", e em 1962 cindiu-se entre PCB e PCdoB. Deste modo é claro que a "orquestração comunista subversiva" corresponde ao discurso político da época, que precisava do fantasma comunista para justificar a quebra da ordem democrática, e não a uma análise fundamentada. Esse sujeito oculto chega a ser nominado como "comando subversivo", na p. 200, como se existisse uma coordenação mutuamente aceita entre os diversos grupos de esquerda, o que não era real. Ao mesmo tempo, se oculta a estruturação do golpe por meio do complexo IPES/IBAD, fartamente documentada e discutida, por exemplo, pela obra já clássica de Richard (René Armand) Dreifuss, "1964: a conquista do Estado", que funcionava como um estruturador de classes sociais dominantes, interesses estrangeiros e lideranças militares em torno de um novo projeto econômico e social que pudesse superar o desenvolvimentismo e o crescimento do poder de negociação das classes trabalhadoras através de seus sindicatos e movimentos. Na mesma página, são claros os juízos de valor na seleção da ilustração única, que é da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, e da descrição da mesma como "um espetáculo comovente".
A parcialidade continua ao descrever a greve dos marinheiros como indisciplina militar, epíteto do qual foram poupados, por exemplo, as revoltas militares tenentistas da década de 1920. O mau hábito do resumo excessivo complica a descrição do período ao afirmar que "uma inusitada reunião política nas dependências do Automóvel Clube do Brasil" agredia nação e significava uma manifestação de indisciplina. Sem a informação de quem participou da reunião e de qual era seu assunto, ao aluno só cabe crer na descrição.
Descreve-se o golpe como o resultado da ação de lideranças democráticas, civis e militares, "grupos moderados e respeitadores da lei e da ordem". Para além a dúvida sobre como um grupo de respeitadores da lei depõe um presidente legitimamente eleito e referendado também por um plebiscito, trata-se de uma descrição incompleta, pois não dá conta do conjunto de interesses e classes mobilizadas para o golpe, reduzindo-o a um movimento de poucos líderes militares apoiados de perto por alguns civis e de longe pela massa.
Também se descreve o regime de forma lacunar, tanto em suas motivações declaradas (combater a corrupção e a comunização e reorganizar a administração do país) quanto nas consequências efetivas de suas realizações. Por exemplo, o milagre econômico é explicado de modo desvinculado da carestia dos anos 70 e da crise econômica do início dos anos 80, embora sejam processos relacionados. A lacuna mais expressiva, entretanto, é o ciclo de violação dos direitos humanos, tortura, assassinato e desaparecimento de opositores políticos e seus familiares, realizados por setores das forças armadas e associados, ao arrepio inclusive das leis militares. Esse quadro, que seria impossível sem a suspensão de direitos em função do AI-5, é omitido. Omite-se que o recrudescimento da repressão militar chegou mesmo a ameaçar a autoridade do presidente Ernesto Geisel, que se viu na contingência de exonerar o Comandante do 2º Exército, general D'Ávila Mello por ter permitido as mortes de Manuel Fiel Filho e Vladimir Herzog, este nas dependências do exército em São Paulo. Também o tragicamente frustrado atentado terrorista do Riocentro, que estava sendo preparado por militares do exército, é omitido.
Com tantas omissões, fica impossível para o aluno entender que a Anistia também se referia ao perdão dos crimes cometidos por membros das forças armadas e seus associados na repressão aos opositores da ditadura. De um modo geral, todos os atos antidemocráticos da ditadura são explicados como reações à intransigência dos opositores, explicação que nem serve ao caso, pois transigência é possível num estado de relativa simetria entre as forças opostas, o que não está dado em uma ditadura.
[2] A ANPUH respondeu a esta carta da COGEAM lamentando e manifestando sua decepção com a postura de indiferença manifestada.
[3] Disponível em http://www.fnde.gov.br/index.php/ph-arquivos/category/12-guias-pnld-2011?download=40%3Apnld2011historia.
Publicado no Informativo Eletrônico da ANPUH
Informe ANPUH – Edição 15, ano 3.
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