Dossiê Pagu - I
Pagu por Patrícia Galvão
Memórias de uma jovem revolucionária
(este artigo foi publicado na revista O Escritor, número 119)
Há uma Pagu cravada no imaginário dos brasileiros, montada com informações salpicadas por diversos meios desses que, todos juntos, formam aquilo a que se deu o nome de 'a mídia'. A Pagu que está nas canções, nas minisséries, nos filmes. Por sedutora que pareça, é diferente da que surge nas memórias que seus filhos, Geraldo e Rudá, decidiram trazer à luz, já neste século.
Foram publicadas pela Agir sob o título Paixão Pagu a autobiografia precoce de Patrícia Galvão. A impressão transmitida é enganosa: tende-se a pensar que ela, pretensiosamente, possa ter escrito essas memórias com a intenção de publicá-las. Não. Trata-se de uma longa carta escrita a Geraldo Ferraz, com quem se casou ao sair da prisão em 1940 e que foi seu companheiro até o fim, em 1962.
O filhos deles, o jornalista Geraldo Galvão Ferraz, recebeu-a do pai na década de 1970 em uma pasta com "fotografias, envelopes, documentos". Não a leu logo. No prefácio ao livro, diz: "ao longo de décadas, bem que tentei. Mas nunca fui além de umas poucas laudas, brecado pela emoção". Quando por fim terminou a leitura, concluiu que "o texto era tão revelador, tão intenso, que tinha de ser repartido com o máximo de pessoas possível". Consultou Rudá, que concordou com a publicação.
O cineasta Rudá de Andrade, filho de Patrícia Galvão e de Oswald de Andrade, é provavelmente o personagem mais importante nessas memórias. Pagu fala nele com amor infinito, mesmo quando lembra os períodos em que esteve afastada do filho, por exigências do Partido Comunista do Brasil (PCB), ao qual se filiara. A ausência de Rudá "meu Rudázinho", como ela diz povoa o livro. Essa ausência é um personagem, também.
Ao destinatário da carta ela se dirige como "meu Geraldo". "É incrível, meu Geraldo, mas quando resolvi lhe contar a história da minha vida, pensei numa narrativa trágica. Hoje parece apenas que lhe conto que fui à quitanda comprar laranjas" (p. 54).
O envolvimento com Oswald de Andrade, neste relato, não se reveste da aura de romance que usualmente lhe dão. É difícil para o leitor enxergar em Oswald, a partir do olhar de Pagu, o transgressor que a mídia consagrou: "Oswald não era pior do que os outros. Não era sequer vaidoso. E se sempre apareceu como tal, nada mais era do que defesa de sua personalidade, torturada por uma série de complexos de inferioridade. [...] A impotência, ou pelo menos a inferioridade física, era seu maior flagelo, e sua maior alegria era poder arrebatar Nonê com suas conquistas". (p. 113)
Tarsila do Amaral é mencionada apenas no contexto do casamento de Pagu com o pintor Waldemar Belizário, que morava nos fundos da casa de Oswald e Tarsila: "O meu casamento com Waldemar foi a forma planejada para que eu, de menor idade, pudesse sair de casa sem complicações. Conversando um dia com Oswald e Tarsila, falei-lhes sobre essa necessidade e eles prometeram auxiliar-me" (p. 60). Waldemar aceitaria participar da farsa em troca de uma viagem de estudos à França. Júlio Prestes, então presidente da província de São Paulo, aceitou dar-lhe a viagem como 'prêmio', para ajudar Pagu. O casamento foi marcado para dali a um mês.
Todas as referências sobre a união de Pagu e Oswald de Andrade nos dizem que ambos fugiram para Santos enquanto Waldemar partia para a Europa . O que ela conta é diferente. Após o casamento, foi para a Bahia, pensando em viver lá, depois de dar início aos procedimentos para a anulação do casamento. Um telegrama de Oswald pede-lhe que volte, alegando problemas na sentença de anulação. Era um "pretexto": "havia deixado Tarsila", conta Pagu. E enfatiza: "Eu não amava Oswald" (p. 60). O que os unia, diz, eram "afinidades destrutivas" e "preconceitos opostos aos estabelecidos" (p. 61).
É no relato da militância política, em conseqüência da qual foi presa 23 vezes, durante a ditadura de Getúlio Vargas, que Pagu se concentra. Não fala das prisões fala da luta. "Não vou relatar os sofrimentos por que se passa numa prisão de mulheres. [...] A prisão não tinha importância para mim, a não ser no que se referia à paralisação do trabalho começado" (pp. 90-91).
Quanto ao início de sua ligação com o PCB, mais uma vez a lenda diverge da autobiografia. São inúmeras as referências que atribuem ao "próprio Luís Carlos Prestes", com quem Pagu se teria encontrado na Argentina, a responsabilidade pela sua entrada no partido. Ela, no entanto, diz que lá encontrou apenas as irmãs de Prestes e seu amigo Silo Meirelles, que lhe entregou diversas publicações marxistas. Naquele momento, Prestes já havia declarado seu apoio ao Partido Comunista, do qual, no entanto, recebia ataques que "aceitava estoicamente" (p. 71).
O olhar crítico de Pagu disseca vaidades que não permite nem a si mesma. Dos intelectuais argentinos, diz: "Aquelas assembléias literárias, como eram enfadonhas. O ambiente idêntico ao que eu conhecia cercando os intelectuais modernistas no Brasil. As mesmas polemicazinhas chochas, o mesmo exibicionismo. Eu os freqüentava sem entusiasmo. Bastaria fugir dali para livrar-me deles. Mas eu ficava" (p.72-73).
Poucos personagens aparecem com dignidade nessas memórias. Entre os intelectuais, Raul Bopp, Guilherme de Almeida, Raquel de Queiroz, Murilo Mendes. Dos revolucionários, Herculano de Souza, Luís Carlos Prestes, Eneida e seu companheiro Villar (cujo primeiro nome não é mencionado). Como a carta se destina unicamente a Geraldo, Pagu usa apenas os nomes pelo qual eles chamavam as pessoas a quem se refere. Em alguns casos, podemos inferir ou tentar adivinhar quem são. É o caso de um Borges, por exemplo, de quem diz, sem acrescentar prenomes: "Borges quis se despir no meu quarto cinco minutos depois de me conhecer. Fazer lutinha comigo" (p. 72). Como ela está em Buenos Aires, inserida em rodas de escritores (pelos quais não demonstra admiração ou entusiasmo), fica pouca dúvida quanto à identidade do personagem. Mas temos de lembrar que nesse momento o grande Borges tinha pouco mais de 30 anos não era o escritor idoso, cego, que ficou na nossa memória e cuja imagem suscita respeito e admiração.
É em Montevidéu que Pagu e Oswald por fim encontram "um homenzinho de aparência medíocre. Eu estava só e quase despedi o nosso visitante, que era Luís Carlos Prestes. Conversamos por três dias e três noites. Como tinham vida aqueles olhos que pareciam enormes. [...] As maiores tolices que eu dissesse seriam ouvidas com paciência e contestadas com minúcia, como se eu fosse a única pessoa no mundo que necessitasse ser recrutada" (p.75). Mas ela conta que "os dias com Prestes não foram suficientes para determinar uma nova orientação". Isso viria depois, em Santos, por obra de Herculano de Souza, o estivador a quem ela se refere como "o preto Herculano" e de quem diz: "As respostas surgiam todas na pregação do enorme trabalhador negro. Que diferença da explicação intelectual de Prestes, que me exaltara sem convencer" (pp. 80-81).
Encarregada de organizar o Socorro Vermelho em Santos, Pagu conta que conseguiu muito mais adesões do que pedia a meta fixada pelo partido. Escreve: "Minha atividade mostrou rendimento e o partido determinou que eu deixasse todas as obrigações particulares para me dedicar exclusivamente ao trabalho da organização (p. 87).
Herculano viria a ser assassinado pela polícia durante um comício em homenagem a Sacco e Vanzetti, depois do qual Pagu seria presa pela primeira vez, como "agitadora". Nas memórias, ela declara que o discurso heróico atribuído a ela foi feito na verdade por Maria, uma cozinheira, grande oradora. Mas Pagu, primeira mulher a ser presa no Brasil por razões políticas, tem seu nome cercado de mitos enquanto está na prisão, o que foi "considerado pernicioso pelo Partido por se tratar de uma militante de origem pequeno-burguesa. Sugeriu-se um manifesto e uma declaração minha". Foi então obrigada a declarar que provocara "a desordem" no comício, falando "sem conhecimento", sem "autorização da organização, com intento provocador, etc. A humilhação foi dura. Mas achei justa a determinação, disposta a todas as declarações que exigisse de mim o meu Partido" (p. 91).
Que pede ainda mais: "Exigiam minha separação definitiva de Oswald. Não discuti. A atitude de Oswald foi simpática. Disse apenas que eu teria sempre um lugar junto dele. Sofri horrivelmente deixando Rudá, mas não houve de minha parte a menor hesitação" (p. 95). Ela consegue emprego na Agência Brasileira e no Diário da Noite, mas o partido veta: "Nada de trabalho intelectual". (p. 96)
Trabalha como empregada doméstica, como lanterninha num cinema e como metalúrgica, sempre tentando conseguir adesões para o partido e para os sindicatos. "Com as mãos feridas, o rosto negro de pó, fui considerada comunista sincera. Da noite para o dia, entregaram-me tarefas de maior responsabilidade". Foi designada como sentinela da Conferência que reuniria "os chefes supremos do Partido Comunista Brasileiro e os representantes da Internacional no Brasil" (p. 99), ao fim da qual, "vendo as figuras [...] dos companheiros que se despediam como irmãos, sentia um bem-estar envolvente. O proletariado brasileiro guiado por uma vanguarda daquela têmpera seria vitorioso dentro de pouco tempo" (p. 102), ela tinha certeza.
Esse entusiasmo não era correspondido por todos os participantes. É sobre sua presença nessa Conferência que Leôncio Basbaum escreveu em Uma Vida em Seis Tempos que "um desses elementos, podemos dizer perniciosos, era uma moça (poetisa) chamada Pagú, que vivia, às vezes, com Oswald de Andrade. Ambos haviam ingressado no Partido, mas para eles, principalmente para Oswald, tudo aquilo lhes parecia muito divertido. Ser membro do PC, militar ao lado dos operários 'autênticos', tramar a derrubada da burguesia e a instauração de uma 'ditadura do proletariado' era sumamente divertido e emocionante. Nessa Conferência Regional do Rio, um dos membros do grupo de autodefesa, armado de revólveres, era Pagú... Mas havia outros intelectuais, estes um pouco mais sérios, como Eneida." (apud Augusto de Campos, em Pagu, Vida-Obra, p. 325).
Algum tempo depois da Conferência, Eneida e seu companheiro, o operário Villar, foram expulsos do partido. Pagu, membro do Comitê Fantasma, é obrigada trair o casal, roubando da casa deles a carta que pretendiam enviar à Internacional Comunista pedindo sua reintegração. "Como me sentia ridícula no meu papel de Mata-Hari provinciana. Saí como um trapo dali", ela diz (p. 118).
As missões que recebe parecem-lhe cada vez mais repugnantes, envolvendo seduzir sexualmente políticos de quem deveria obter informações. Argumenta que a outras militantes não se pede isso e nem que abandonem seus filhos , mas respondem-lhe que ela é mais que mera militante, é "uma mulher excepcional" (p. 126). "Pouco a pouco fui percebendo o verdadeiro caráter do Comitê Fantasma", ela diz. "Os malandros do mangue não percebiam que ao seu lado, participando de suas roubalheiras, estava um membro do P.C.B. Nem a prostituta que apanhava sabia que estava pagando a viagem de um dirigente que precisava, a bem da ilegalidade, embarcar em primeira classe".
Quando fica seriamente doente e precisa de uma cirurgia, o partido a manda de volta para Oswald. Pagu não aceita voltar. Nonê a visita no quarto que dividia com uma mendiga e de onde Oswald a resgata, dias depois, para levá-la para casa. "Oswald foi de uma delicadeza e uma discrição absolutas", diz Pagu. "Recebeu-me como se eu o tivesse deixado meia hora antes. Não me fez uma pergunta. Falou ao filhinho que eu afagava: 'Mamãe chegou'. E deixou-me só, sabendo que eu sofria com sua presença" (pp. 108-109).
Seguem-se fugas sucessivas, com Pagu e Oswald mudando de endereço com freqüência, perseguidos pela polícia. Às vezes levavam Rudá consigo, às vezes deixavam-no com governantas. A irmã caçula de Pagu, Sydéria, chegou a ser presa por engano.
Em uma campanha de depuração do partido, "dois ou três intelectuais da direção" procuraram expulsar da organização "todos os elementos que não tinham origem proletária [...] excetuando-se a si mesmos [...], é claro". Pagu é afastada por período indeterminado. O companheiro que leva a ordem de afastamento acena com uma esperança: "a organização consente que você faça qualquer coisa para provar sua sinceridade. Trabalhe à margem, intelectualmente."
Nasce assim a ideia de escrever a novela Parque Industrial, o primeiro livro de Patrícia Galvão, publicado sob o pseudônimo de Mara Lobo. "Se não fosse por insistência de Oswald, não a teria feito", ela diz. "Não tinha nenhuma confiança" em seus dotes literários (p. 112). Geraldo Ferraz foi quem publicou a primeira crítica ao livro.
O partido sugere, nesse período de afastamento, que Pagu viaje para a Rússia com seus próprios recursos. Se "embarcasse o mais depressa possível", receberia credenciais. Mas para obtê-las foi preciso assinar, pela segunda vez em sua história de militância, um documento que não foi autorizada a ler. "Eu o fiz sem hesitar" (p. 136). Esses dois documentos assinados por Pagu devem andar por aí, em algum arquivo secreto...
Durante a viagem, vê tudo com um "adormecimento de sensações", em que os outros viajantes formavam "um bloco maçante. Eu, que sempre sonhara com longas viagens, não sentia nenhum entusiasmo. Separava-me mais uma vez de meu filho. Ele sofria muito com isso" (p. 137).
Passa um mês nos Estados Unidos. "Era como se já conhecesse tudo. Maior ou menor centro, a mesma humanidade. Ainda perseguições sexuais. Mas todo o meu ser desprezava qualquer insinuação. Como dão importância em toda parte à vida sexual. Parece que há no mundo mais sexo do que homens. Tanta puerilidade, tanta mediocridade" (p. 139).
Antes, passara pelo Pará, onde recebeu "uma recepção inesperada" que, sempre crítica, descreve: "A eterna história dos intelectuais modernos, que se acham na obrigação de fazer circulozinhos em torno de qualquer nome que a imprensa publica duas vezes na crônica escandalosa. O meu nome chegara até o Pará e tive que agüentar as boas vindas do mundo literário chefiado por Abguar. Passeios pela cidade, conversinhas de café, etc. Acabaram me deixando nas mãos de um padre, que me levou ao cinema de onde tive que sair às pressas para não me afogar na batina" (p.138). "A viagem parecia interminável. Da América para o Japão, um bando de turistas irrespiráveis. Desci do navio como quem desce do bonde. Bopp foi o primeiro sorriso simpático que encontrei, depois de muito tempo. [...] Você, Geraldo, é a única pessoa que sabe que [Bopp] foi muito e apenas meu amigo" (p. 140).
Descreve Tóquio como "uma grande cidade, nada mais. Por que chamam de exótico ao Japão? Procurei os intelectuais revolucionários. Fracasso. Procurei o proletariado japonês. A vanguarda, a mesma de sempre. Não suportava mais o Japão. Bopp ajudou-me a ir a Xangai. Vi a fome em Xangai. Desejei um milagre para salvar sozinha a vida da China" (p. 142). Em Pequim ela se surpreende "chorando depois de tanto tempo, desconfiando de minhas lágrimas, que bem podiam ser atitude composta. [... ] Tinha medo do teatro em que podia me fazer personagem" (p.143). "As crianças e os ratos. Os chicotes matando, as torturas públicas. Vi dezenas de mulheres morrendo. Como riam, as mulheres mortas. Não falarei da China. Não me pergunte nunca o que vi e o que senti ali, porque só direi que vi o lodo dourado do Yang-Tsé. Quando saí de Pequim, a morte vinha me acompanhando" (p. 144).
Na Sibéria, maravilha-se: "estava obscena de felicidade. Êxtase absoluto diante da juventude. [...] Eram as mesmas caras dos cartazes de propaganda. [...] Na rua, tive noção do meu fanatismo. Mas gozei-o delirantemente" (pp. 148).
A primeira decepção surge em Moscou, quando entrega uma carta de recomendação a Boris, oficial do Exército Vermelho, que a convida para jantar no Metropol, o hotel onde vive. Pagu surpreende-se com "o preparo luxuosíssimo da refeição. Depois o conhaque no salão de baile. A impressão era exatamente a de estar num suntuoso palácio capitalista. Boris não me explicou porque residia lá, dizendo apenas ser necessário. Houve a tentativa de beijo, como em todos os países" (p. 148). E vem a desilusão final, na praça Vermelha do Kremlin, quando Boris se afasta para comprar chocolates que Pagu queria levar para Rudá. Ela sente que alguém lhe puxa o casaco. Era uma garotinha pedindo esmola: "os pés descalços pareciam mergulhar em qualquer coisa inexistente, porque lhe faltavam os dedos dos pés. Todas as conquistas da revolução pararam naquela mãozinha trêmula estendida para mim. E eu comprava bombons. Então a revolução se fez para isso? Fiz o que pude para acreditar nas justificativas que Boris me apresentou. 'São vagabundos que não querem trabalhar e sabotam o socialismo.' Mas como? Crianças vagabundas?!" (pp. 149-150). Ela deixa Moscou no meio do desfile esportivo, enquanto Stalin, "o nosso chefe", estava na tribuna.
Aqui terminam as memórias de Pagu que assinava Pagú escritas em 1940. A partir daí, ela deixará de usar esse apelido. Seguirá para a França, onde ainda militará, sob o codinome de Léonnie, mas isto já não está nas memórias.
Memórias de uma jovem revolucionária
(este artigo foi publicado na revista O Escritor, número 119)
Há uma Pagu cravada no imaginário dos brasileiros, montada com informações salpicadas por diversos meios desses que, todos juntos, formam aquilo a que se deu o nome de 'a mídia'. A Pagu que está nas canções, nas minisséries, nos filmes. Por sedutora que pareça, é diferente da que surge nas memórias que seus filhos, Geraldo e Rudá, decidiram trazer à luz, já neste século.
Foram publicadas pela Agir sob o título Paixão Pagu a autobiografia precoce de Patrícia Galvão. A impressão transmitida é enganosa: tende-se a pensar que ela, pretensiosamente, possa ter escrito essas memórias com a intenção de publicá-las. Não. Trata-se de uma longa carta escrita a Geraldo Ferraz, com quem se casou ao sair da prisão em 1940 e que foi seu companheiro até o fim, em 1962.
O filhos deles, o jornalista Geraldo Galvão Ferraz, recebeu-a do pai na década de 1970 em uma pasta com "fotografias, envelopes, documentos". Não a leu logo. No prefácio ao livro, diz: "ao longo de décadas, bem que tentei. Mas nunca fui além de umas poucas laudas, brecado pela emoção". Quando por fim terminou a leitura, concluiu que "o texto era tão revelador, tão intenso, que tinha de ser repartido com o máximo de pessoas possível". Consultou Rudá, que concordou com a publicação.
O cineasta Rudá de Andrade, filho de Patrícia Galvão e de Oswald de Andrade, é provavelmente o personagem mais importante nessas memórias. Pagu fala nele com amor infinito, mesmo quando lembra os períodos em que esteve afastada do filho, por exigências do Partido Comunista do Brasil (PCB), ao qual se filiara. A ausência de Rudá "meu Rudázinho", como ela diz povoa o livro. Essa ausência é um personagem, também.
Ao destinatário da carta ela se dirige como "meu Geraldo". "É incrível, meu Geraldo, mas quando resolvi lhe contar a história da minha vida, pensei numa narrativa trágica. Hoje parece apenas que lhe conto que fui à quitanda comprar laranjas" (p. 54).
O envolvimento com Oswald de Andrade, neste relato, não se reveste da aura de romance que usualmente lhe dão. É difícil para o leitor enxergar em Oswald, a partir do olhar de Pagu, o transgressor que a mídia consagrou: "Oswald não era pior do que os outros. Não era sequer vaidoso. E se sempre apareceu como tal, nada mais era do que defesa de sua personalidade, torturada por uma série de complexos de inferioridade. [...] A impotência, ou pelo menos a inferioridade física, era seu maior flagelo, e sua maior alegria era poder arrebatar Nonê com suas conquistas". (p. 113)
Tarsila do Amaral é mencionada apenas no contexto do casamento de Pagu com o pintor Waldemar Belizário, que morava nos fundos da casa de Oswald e Tarsila: "O meu casamento com Waldemar foi a forma planejada para que eu, de menor idade, pudesse sair de casa sem complicações. Conversando um dia com Oswald e Tarsila, falei-lhes sobre essa necessidade e eles prometeram auxiliar-me" (p. 60). Waldemar aceitaria participar da farsa em troca de uma viagem de estudos à França. Júlio Prestes, então presidente da província de São Paulo, aceitou dar-lhe a viagem como 'prêmio', para ajudar Pagu. O casamento foi marcado para dali a um mês.
Todas as referências sobre a união de Pagu e Oswald de Andrade nos dizem que ambos fugiram para Santos enquanto Waldemar partia para a Europa . O que ela conta é diferente. Após o casamento, foi para a Bahia, pensando em viver lá, depois de dar início aos procedimentos para a anulação do casamento. Um telegrama de Oswald pede-lhe que volte, alegando problemas na sentença de anulação. Era um "pretexto": "havia deixado Tarsila", conta Pagu. E enfatiza: "Eu não amava Oswald" (p. 60). O que os unia, diz, eram "afinidades destrutivas" e "preconceitos opostos aos estabelecidos" (p. 61).
É no relato da militância política, em conseqüência da qual foi presa 23 vezes, durante a ditadura de Getúlio Vargas, que Pagu se concentra. Não fala das prisões fala da luta. "Não vou relatar os sofrimentos por que se passa numa prisão de mulheres. [...] A prisão não tinha importância para mim, a não ser no que se referia à paralisação do trabalho começado" (pp. 90-91).
Quanto ao início de sua ligação com o PCB, mais uma vez a lenda diverge da autobiografia. São inúmeras as referências que atribuem ao "próprio Luís Carlos Prestes", com quem Pagu se teria encontrado na Argentina, a responsabilidade pela sua entrada no partido. Ela, no entanto, diz que lá encontrou apenas as irmãs de Prestes e seu amigo Silo Meirelles, que lhe entregou diversas publicações marxistas. Naquele momento, Prestes já havia declarado seu apoio ao Partido Comunista, do qual, no entanto, recebia ataques que "aceitava estoicamente" (p. 71).
O olhar crítico de Pagu disseca vaidades que não permite nem a si mesma. Dos intelectuais argentinos, diz: "Aquelas assembléias literárias, como eram enfadonhas. O ambiente idêntico ao que eu conhecia cercando os intelectuais modernistas no Brasil. As mesmas polemicazinhas chochas, o mesmo exibicionismo. Eu os freqüentava sem entusiasmo. Bastaria fugir dali para livrar-me deles. Mas eu ficava" (p.72-73).
Poucos personagens aparecem com dignidade nessas memórias. Entre os intelectuais, Raul Bopp, Guilherme de Almeida, Raquel de Queiroz, Murilo Mendes. Dos revolucionários, Herculano de Souza, Luís Carlos Prestes, Eneida e seu companheiro Villar (cujo primeiro nome não é mencionado). Como a carta se destina unicamente a Geraldo, Pagu usa apenas os nomes pelo qual eles chamavam as pessoas a quem se refere. Em alguns casos, podemos inferir ou tentar adivinhar quem são. É o caso de um Borges, por exemplo, de quem diz, sem acrescentar prenomes: "Borges quis se despir no meu quarto cinco minutos depois de me conhecer. Fazer lutinha comigo" (p. 72). Como ela está em Buenos Aires, inserida em rodas de escritores (pelos quais não demonstra admiração ou entusiasmo), fica pouca dúvida quanto à identidade do personagem. Mas temos de lembrar que nesse momento o grande Borges tinha pouco mais de 30 anos não era o escritor idoso, cego, que ficou na nossa memória e cuja imagem suscita respeito e admiração.
É em Montevidéu que Pagu e Oswald por fim encontram "um homenzinho de aparência medíocre. Eu estava só e quase despedi o nosso visitante, que era Luís Carlos Prestes. Conversamos por três dias e três noites. Como tinham vida aqueles olhos que pareciam enormes. [...] As maiores tolices que eu dissesse seriam ouvidas com paciência e contestadas com minúcia, como se eu fosse a única pessoa no mundo que necessitasse ser recrutada" (p.75). Mas ela conta que "os dias com Prestes não foram suficientes para determinar uma nova orientação". Isso viria depois, em Santos, por obra de Herculano de Souza, o estivador a quem ela se refere como "o preto Herculano" e de quem diz: "As respostas surgiam todas na pregação do enorme trabalhador negro. Que diferença da explicação intelectual de Prestes, que me exaltara sem convencer" (pp. 80-81).
Encarregada de organizar o Socorro Vermelho em Santos, Pagu conta que conseguiu muito mais adesões do que pedia a meta fixada pelo partido. Escreve: "Minha atividade mostrou rendimento e o partido determinou que eu deixasse todas as obrigações particulares para me dedicar exclusivamente ao trabalho da organização (p. 87).
Herculano viria a ser assassinado pela polícia durante um comício em homenagem a Sacco e Vanzetti, depois do qual Pagu seria presa pela primeira vez, como "agitadora". Nas memórias, ela declara que o discurso heróico atribuído a ela foi feito na verdade por Maria, uma cozinheira, grande oradora. Mas Pagu, primeira mulher a ser presa no Brasil por razões políticas, tem seu nome cercado de mitos enquanto está na prisão, o que foi "considerado pernicioso pelo Partido por se tratar de uma militante de origem pequeno-burguesa. Sugeriu-se um manifesto e uma declaração minha". Foi então obrigada a declarar que provocara "a desordem" no comício, falando "sem conhecimento", sem "autorização da organização, com intento provocador, etc. A humilhação foi dura. Mas achei justa a determinação, disposta a todas as declarações que exigisse de mim o meu Partido" (p. 91).
Que pede ainda mais: "Exigiam minha separação definitiva de Oswald. Não discuti. A atitude de Oswald foi simpática. Disse apenas que eu teria sempre um lugar junto dele. Sofri horrivelmente deixando Rudá, mas não houve de minha parte a menor hesitação" (p. 95). Ela consegue emprego na Agência Brasileira e no Diário da Noite, mas o partido veta: "Nada de trabalho intelectual". (p. 96)
Trabalha como empregada doméstica, como lanterninha num cinema e como metalúrgica, sempre tentando conseguir adesões para o partido e para os sindicatos. "Com as mãos feridas, o rosto negro de pó, fui considerada comunista sincera. Da noite para o dia, entregaram-me tarefas de maior responsabilidade". Foi designada como sentinela da Conferência que reuniria "os chefes supremos do Partido Comunista Brasileiro e os representantes da Internacional no Brasil" (p. 99), ao fim da qual, "vendo as figuras [...] dos companheiros que se despediam como irmãos, sentia um bem-estar envolvente. O proletariado brasileiro guiado por uma vanguarda daquela têmpera seria vitorioso dentro de pouco tempo" (p. 102), ela tinha certeza.
Esse entusiasmo não era correspondido por todos os participantes. É sobre sua presença nessa Conferência que Leôncio Basbaum escreveu em Uma Vida em Seis Tempos que "um desses elementos, podemos dizer perniciosos, era uma moça (poetisa) chamada Pagú, que vivia, às vezes, com Oswald de Andrade. Ambos haviam ingressado no Partido, mas para eles, principalmente para Oswald, tudo aquilo lhes parecia muito divertido. Ser membro do PC, militar ao lado dos operários 'autênticos', tramar a derrubada da burguesia e a instauração de uma 'ditadura do proletariado' era sumamente divertido e emocionante. Nessa Conferência Regional do Rio, um dos membros do grupo de autodefesa, armado de revólveres, era Pagú... Mas havia outros intelectuais, estes um pouco mais sérios, como Eneida." (apud Augusto de Campos, em Pagu, Vida-Obra, p. 325).
Algum tempo depois da Conferência, Eneida e seu companheiro, o operário Villar, foram expulsos do partido. Pagu, membro do Comitê Fantasma, é obrigada trair o casal, roubando da casa deles a carta que pretendiam enviar à Internacional Comunista pedindo sua reintegração. "Como me sentia ridícula no meu papel de Mata-Hari provinciana. Saí como um trapo dali", ela diz (p. 118).
As missões que recebe parecem-lhe cada vez mais repugnantes, envolvendo seduzir sexualmente políticos de quem deveria obter informações. Argumenta que a outras militantes não se pede isso e nem que abandonem seus filhos , mas respondem-lhe que ela é mais que mera militante, é "uma mulher excepcional" (p. 126). "Pouco a pouco fui percebendo o verdadeiro caráter do Comitê Fantasma", ela diz. "Os malandros do mangue não percebiam que ao seu lado, participando de suas roubalheiras, estava um membro do P.C.B. Nem a prostituta que apanhava sabia que estava pagando a viagem de um dirigente que precisava, a bem da ilegalidade, embarcar em primeira classe".
Quando fica seriamente doente e precisa de uma cirurgia, o partido a manda de volta para Oswald. Pagu não aceita voltar. Nonê a visita no quarto que dividia com uma mendiga e de onde Oswald a resgata, dias depois, para levá-la para casa. "Oswald foi de uma delicadeza e uma discrição absolutas", diz Pagu. "Recebeu-me como se eu o tivesse deixado meia hora antes. Não me fez uma pergunta. Falou ao filhinho que eu afagava: 'Mamãe chegou'. E deixou-me só, sabendo que eu sofria com sua presença" (pp. 108-109).
Seguem-se fugas sucessivas, com Pagu e Oswald mudando de endereço com freqüência, perseguidos pela polícia. Às vezes levavam Rudá consigo, às vezes deixavam-no com governantas. A irmã caçula de Pagu, Sydéria, chegou a ser presa por engano.
Em uma campanha de depuração do partido, "dois ou três intelectuais da direção" procuraram expulsar da organização "todos os elementos que não tinham origem proletária [...] excetuando-se a si mesmos [...], é claro". Pagu é afastada por período indeterminado. O companheiro que leva a ordem de afastamento acena com uma esperança: "a organização consente que você faça qualquer coisa para provar sua sinceridade. Trabalhe à margem, intelectualmente."
Nasce assim a ideia de escrever a novela Parque Industrial, o primeiro livro de Patrícia Galvão, publicado sob o pseudônimo de Mara Lobo. "Se não fosse por insistência de Oswald, não a teria feito", ela diz. "Não tinha nenhuma confiança" em seus dotes literários (p. 112). Geraldo Ferraz foi quem publicou a primeira crítica ao livro.
O partido sugere, nesse período de afastamento, que Pagu viaje para a Rússia com seus próprios recursos. Se "embarcasse o mais depressa possível", receberia credenciais. Mas para obtê-las foi preciso assinar, pela segunda vez em sua história de militância, um documento que não foi autorizada a ler. "Eu o fiz sem hesitar" (p. 136). Esses dois documentos assinados por Pagu devem andar por aí, em algum arquivo secreto...
Durante a viagem, vê tudo com um "adormecimento de sensações", em que os outros viajantes formavam "um bloco maçante. Eu, que sempre sonhara com longas viagens, não sentia nenhum entusiasmo. Separava-me mais uma vez de meu filho. Ele sofria muito com isso" (p. 137).
Passa um mês nos Estados Unidos. "Era como se já conhecesse tudo. Maior ou menor centro, a mesma humanidade. Ainda perseguições sexuais. Mas todo o meu ser desprezava qualquer insinuação. Como dão importância em toda parte à vida sexual. Parece que há no mundo mais sexo do que homens. Tanta puerilidade, tanta mediocridade" (p. 139).
Antes, passara pelo Pará, onde recebeu "uma recepção inesperada" que, sempre crítica, descreve: "A eterna história dos intelectuais modernos, que se acham na obrigação de fazer circulozinhos em torno de qualquer nome que a imprensa publica duas vezes na crônica escandalosa. O meu nome chegara até o Pará e tive que agüentar as boas vindas do mundo literário chefiado por Abguar. Passeios pela cidade, conversinhas de café, etc. Acabaram me deixando nas mãos de um padre, que me levou ao cinema de onde tive que sair às pressas para não me afogar na batina" (p.138). "A viagem parecia interminável. Da América para o Japão, um bando de turistas irrespiráveis. Desci do navio como quem desce do bonde. Bopp foi o primeiro sorriso simpático que encontrei, depois de muito tempo. [...] Você, Geraldo, é a única pessoa que sabe que [Bopp] foi muito e apenas meu amigo" (p. 140).
Descreve Tóquio como "uma grande cidade, nada mais. Por que chamam de exótico ao Japão? Procurei os intelectuais revolucionários. Fracasso. Procurei o proletariado japonês. A vanguarda, a mesma de sempre. Não suportava mais o Japão. Bopp ajudou-me a ir a Xangai. Vi a fome em Xangai. Desejei um milagre para salvar sozinha a vida da China" (p. 142). Em Pequim ela se surpreende "chorando depois de tanto tempo, desconfiando de minhas lágrimas, que bem podiam ser atitude composta. [... ] Tinha medo do teatro em que podia me fazer personagem" (p.143). "As crianças e os ratos. Os chicotes matando, as torturas públicas. Vi dezenas de mulheres morrendo. Como riam, as mulheres mortas. Não falarei da China. Não me pergunte nunca o que vi e o que senti ali, porque só direi que vi o lodo dourado do Yang-Tsé. Quando saí de Pequim, a morte vinha me acompanhando" (p. 144).
Na Sibéria, maravilha-se: "estava obscena de felicidade. Êxtase absoluto diante da juventude. [...] Eram as mesmas caras dos cartazes de propaganda. [...] Na rua, tive noção do meu fanatismo. Mas gozei-o delirantemente" (pp. 148).
A primeira decepção surge em Moscou, quando entrega uma carta de recomendação a Boris, oficial do Exército Vermelho, que a convida para jantar no Metropol, o hotel onde vive. Pagu surpreende-se com "o preparo luxuosíssimo da refeição. Depois o conhaque no salão de baile. A impressão era exatamente a de estar num suntuoso palácio capitalista. Boris não me explicou porque residia lá, dizendo apenas ser necessário. Houve a tentativa de beijo, como em todos os países" (p. 148). E vem a desilusão final, na praça Vermelha do Kremlin, quando Boris se afasta para comprar chocolates que Pagu queria levar para Rudá. Ela sente que alguém lhe puxa o casaco. Era uma garotinha pedindo esmola: "os pés descalços pareciam mergulhar em qualquer coisa inexistente, porque lhe faltavam os dedos dos pés. Todas as conquistas da revolução pararam naquela mãozinha trêmula estendida para mim. E eu comprava bombons. Então a revolução se fez para isso? Fiz o que pude para acreditar nas justificativas que Boris me apresentou. 'São vagabundos que não querem trabalhar e sabotam o socialismo.' Mas como? Crianças vagabundas?!" (pp. 149-150). Ela deixa Moscou no meio do desfile esportivo, enquanto Stalin, "o nosso chefe", estava na tribuna.
Aqui terminam as memórias de Pagu que assinava Pagú escritas em 1940. A partir daí, ela deixará de usar esse apelido. Seguirá para a França, onde ainda militará, sob o codinome de Léonnie, mas isto já não está nas memórias.